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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

18
Nov11

[um milagre] o reencontro mais improvável...

beijo de mulata

Na rua da casa das Irmãs...
(Bairro de Muahivire, Nampula)

(...continuando a história que, para quem só chegou agora, começou aqui...)

Do outro lado da rua, um jovem tinha parado ao ver-me sair de casa e olhava-me fixamente. Vi-o dirigir-se na minha direcção e seguir-me de perto, quase encostado a mim, a tentar olhar-me nos olhos. Comecei a andar mais rápido, fingindo que não o tinha visto. Estava quase à porta da igreja quando ele me alcançou:

– Doutora…

Estaquei. Agora, rodeada de pessoas, estava segura. Voltei-me para o desconhecido que me olhava nos olhos, a sorrir:
– Tia P., lembra di mim?

À minha frente estava o rapaz que no ano anterior, na Casa do Gaiato de Maputo, me tinha ajudado a cuidar do meu menino numa noite fatídica em que ele quase me morreu nos braços.
– Vicente! Como é possível? Tu aqui? O que é que estás aqui a fazer?
– Eu estou aqui a fazer um estágio. Agora estou a estudar em Nampula para ser técnico de laboratório.

Tive de fazer um esforço enorme para não começar a chorar porque a dor de ter perdido o meu anjo, o meu quase-filho, regressou de repente sem aviso e com uma violência bruta cravada mesmo no meio do peito. Quase fiquei sem respirar… Abracei-o. Ele percebeu porquê.
– O Nelson, tia P…
– Eu sei, Vicente.
– Sofreu muito…
– Não digas isso, que me dói muito mais.
– A mim também! Fiquei muito triste… Ainda estou muito triste… Mas aqui ninguém o conhece, ninguém compreende que eu fiquei órfão do menino que chamava pai a mim…
– Ai, Vicente…

Ainda não nos tínhamos largado daquele abraço. Reconhecia no seu cheiro a angústia daquela madrugada e na sua voz, a voz que tinha conseguido acalmar o meu menino e o tinha feito abrir os olhos novamente, devolvendo-me a esperança. Chorávamos ambos, sob as mangueiras que ladeavam a entrada da igreja e nos cobriam de penumbra, escondendo-nos das estrelas e da lua em quarto crescente. Nunca tinha tido aquela sensação de que uma e apenas uma pessoa no mundo me poderia compreender e sentir o mesmo que eu. Era bom chorar com o Vicente…
– Eu ainda não tinha conseguido chorar por ele, tia P.
– E eu acho que ainda não chorei tudo…

Algumas pessoas que continuavam a chegar para a missa olhavam-nos, espantadas, sem compreender a razão para aquele cenário improvável, uma loira desconhecida e um jovem da paróquia, tão tristes, abraçados mutuamente sem se despegarem, a chorar em silêncio… Se alguém alguma vez tivesse representado a imagem de Nossa Senhora e São José na noite da Paixão de Cristo seria de certeza parecida com a nossa naquele momento… Mas era hora da missa. Compus-me.
– As pessoas estão a olhar para nós, Vicente. Daqui a nada começam a falar e eu não quero.

Dentro da igreja ouvia-se já a resposta dos fiéis: “Bendito seja Deus, que nos reuniu no amor de Cristo.”
– Vamos, temos de ir…

Sentámo-nos juntos. Por vezes de mãos dadas, quando a dor no peito apertava mais. As lágrimas iam-nos correndo a fio sem que as tentássemos impedir ou disfarçar. Era uma dor tão física que quase me sufocava. E mais uma vez voltava a mesma pergunta que nunca há-de ter resposta. Que sentido podia ter a morte de uma criança? Que sentido podia ter a morte do meu menino? Um anjo tão feliz... Eu tinha passado os últimos meses com uma sensação horrível de isolamento. Tinha receio de partilhar o meu desgosto por medo que alguém o achasse descabido, absurdo, despropositado… Que não tinha a mesma legitimidade para sofrer por o menino não ser meu, não ter nascido do meu ventre. Mas se alguém pensa que o amo menos por ele ter morrido… Se alguém pensa que não o amei com todas as minhas forças, mesmo sabendo que ele ia morrer. Ama-se menos se se tiver data marcada? Não, não encontrava um sentido…

Durante a missa, com o Vicente ao meu lado, a música dos cânticos, o ambiente místico e envolvente, quase podia sentir a presença do nosso menino. Fomos juntos receber a comunhão. Ele esperou por mim para comungarmos ao mesmo tempo. As pessoas olhavam-nos, mas não comentavam. Parecia que compreendiam que aquilo não era um namoro. Provavelmente saltava à vista que estávamos os dois a sofrer juntos… E a sofrer muito…
– E, tia P., que está aqui a fazer? – Perguntou-me no final da missa.

Falei-lhe da missão de Iapala e de como tinha vindo agora a Nampula ver os meninos da escolinha das Irmãs.

– E tu, onde estás a estagiar?
– Num Centro de Saúde aqui na cidade.
– Não me digas que é o 25 de Setembro?!
– Sim, é o único que tem vagas para nós todos. Tem muito movimento.

Nem queria acreditar na coincidência… Mas enfim, já sabemos que o meu Pai é o dono disto tudo… e que escreve direito por linhas tortas.

(continua...)

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