20
Out11
[instantes] pode uma mulher apaixonar-se na savana?
beijo de mulata
Hidratando uma criança no hospital. Num outro dia...
(Iapala, Nampula)
(continuando... vá, não desanimem...)
Ah, aqueles homens no seu melhor! Moçambique no seu melhor! Sorri, agradecida por aquele momento de tranquilidade e, de repente, voltei a ouvir o silêncio da savana e a sentir o cheiro do mato. A sensação de perigo e o pânico tinham-se desvanecido. Voltei para dentro do carro à procura do estetoscópio e da bolsa dos medicamentos. Preparei soro oral, consegui encontrar duas seringas dentro da minha mala-safari e voltei para o pé das meninas. Entretanto as mulheres, à boa maneira moçambicana, já se tinham instalado numa esteira no chão e aguardavam sentadas, calmamente, o resultado dos testes.
– Então, Sr. Cachimbo?
– Positivos, Doutora!
– Os dois?
– Sim, os dois. Doutora tem medicamento de malária?
– Tenho aqui quinino em comprimido para a mais nova.
– Para a mais velha eu tenho Coartem. Ando sempre com uma dose porque posso precisar…
– Óptimo! Pode ir buscar, então. Deixe-me só observá-las para ver se precisam de mais alguma coisa.
Observei-as, auscultei-as, vi-lhes os ouvidos, a boca, a garganta, a barriga... Era tudo só malária e desidratação grave. Ofereci-lhes soro na seringa e ambas tiveram a mesma reacção: precipitaram-se, ávidas e sôfregas para o líquido que lhes entrava enfim no corpo. Finalmente alguém as compreendia! Olhavam-me nos olhos e seguravam a seringa com ambas as mãos enquanto bebiam o soro, como uma criança olha a mãe e lhe toca no seio enquanto está a mamar com fome e prazer. Tomaram o paracetamol, o quinino e o Coartem sem qualquer dificuldade.
[Fico sempre admirada pela forma como estes meninos conseguem tomar comprimidos mais amargos que veneno sem um esgar de repulsa, sem o esboçar de um vómito, sem tentar cuspir…]
Quase ao mesmo tempo, o carro estava novamente pronto para partir.
– Vamos embora, então, que temos ainda muito que andar.
– Eu vou lá atrás na caixa do carro – ofereceu-se o Sr. Cachimbo.
– Atrás? Claro que não, Sr. Cachimbo, cabemos quase todos dentro do carro.
– Não, Doutora. As crianças não têm fralda. Têm de ir lá fora porque se não vão sujar o carro todo e as mamãs não vão aceitar.
– Acha?
– Sim, Doutora. Eu vou com elas para controlar se tomam soro.
– Está bem, então. Obrigada por fazer isso.
– Sim, Doutora.
Ajudou as mamãs a subir para a caixa aberta do jipe e entreguei-lhe as meninas, uma a uma e ele aproximou-se e envolveu-as nos meus braços, num abraço conjunto a três que durou um momento, mas o tempo suficiente para me transmitir uma ternura tal que quase me deixou atordoada. Pegou nelas com a delicadeza genuína de um pai enorme e desajeitado que tem receio de magoar as suas meninas doentes e entregou-as à mãe e à tia. Olhei-o, desarmada e ele sorriu-me, olhos nos olhos, brevemente, compenetrado no seu papel de enfermeiro de ambulância.
Partimos novamente. Os quatro adultos a quem íamos dar boleia com um sorriso aliviado nos lábios: as mulheres com um novo brilho no olhar e os homens ainda maravilhados por terem visto de perto a roda de um jipe e descoberto segredos que nunca imaginariam ao seu alcance. O Sr. Cachimbo subiu também para a caixa aberta, certamente de coração mais leve por ter sido prestável, por me ter impressionado e por se ter livrado da discussão azeda com o Sr. Rafael. E este, no banco ao meu lado, seguia agora finalmente tranquilo e disposto a dormir. O carro novamente estável e previsível, e com a direção alinhada. Em menos de meia hora o carro dos loucos tinha ganho uma alma nova. É incrível como às vezes há situações que parece que têm o condão de ir buscar o melhor que há em cada um e ressincronizar o bater dos corações.
(continua...)