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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

19
Out11

[aviso à navegação] ignore este aviso!

beijo de mulata
Meus caros amigos, vocês sabem o respeito com que vos trato e o carinho que tenho por todos os que me vêm visitar aqui ao mato. Agradeço-vos do fundo do coração quando passam por cá e não me deixam viver sozinha nesta savana, com as minhas recordações, as minhas ruminações e as minhas histórias...

Mas, por favor, eu até já vos expliquei longamente as razões pelas quais este fim de mundo não possui um livro de reclamações. E não me venham dizer que o facto de na barraca do Sr. Pompisk* também não existir um livro de reclamações não é um argumento válido, que eu vivo com a máxima de "em Roma sê romano". Portanto, no Gilé tenho de ser zambeziana! E na verdade, também não me apetece... Por isso podem parar de reclamar com a história da minha viagem de Iapala para Nampula, que está longa demais, que já perderam o fio à meada, que já não sabem em que zona do globo me encontro, que este blogue pelo menos devia ter um GPS (esta vou considerar, pronto, não um GPS mas um mapa... às vezes dá jeito, sobretudo para quem, ao contrário de mim, tem a graça de ter umas gotinhas de androgénios no cérebro). E de qualquer modo, para não se aborrecerem, eu até vou intercalando com outras historietas... Palavra que não sei do que se queixam!

Por isso, meus queridos, podem ter a certeza de que eu só vou terminar a história da minha viagem de Iapala para Nampula quando, de facto, chegar sã e salva a Nampula, com o Sr. Rafael, o Sr. Cachimbo, as duas meninas doentes, os pais das ditas meninas, o pineu furado e todos os que mais vierem a juntar-se a nós pelo caminho. E tenho dito. É que foram quase 200 km à velocidade suicida de 30-40 km/h. E houve muitas peripécias. Desculpem qualquer coisinha, tá? Vá, parem de se queixar! Venham daí, voltemos para o mato.

* Para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço. Um abraço apertado e cheio de saudade... Não sei se aguento muito mais, palavra.
19
Out11

[a caminho de nampula...] e, de repente, tudo melhora

beijo de mulata

Uma criança muito desidratada... (Foto tirada noutra circunstância)
(Gurué, Zambézia)

(continuando...)

Era preciso fazer alguma coisa por elas rapidamente, ou possivelmente não chegariam vivas.

– Mas, papá, a mais pequena não mama?
– Está a negar, Irmã.

Que desespero! Mas eu já nem insistia muito… Quando os pais viam as crianças a recusar alimentação ou líquidos, pura e simplesmente não insistiam mais. Por isso me doía tanto na alma ver morrer crianças de desidratação, mesmo que as mães estivessem de peito a transbordar de leite e nos hospitais tivessem quanto soro oral fosse preciso à disposição. Eu bem tentava explicar-lhes que não era o soro que lhes provocava a diarreia, mas era quase impossível convencê-los… Mais valia ser eu a arregaçar as mangas e dar eu própria o soro às crianças. Pelo menos aquelas que eu tomava em braços não haveriam de morrer.

Em poucos segundos, já o Sr. Rafael saía do carro. Vi-o abrir a porta pelo canto do olho e precipitei-me para o ajudar para ele não cair estatelado no chão e consegui que saísse mais ou menos direito. Dirigiu-se directamente para o pneu traseiro do lado oposto, que de facto, bingo!, estava completamente em baixo.

– Papá, nós podemos levá-los mas temos um problema com o carro. Tem um pneu furado e precisa de ser trocado. Será que nos podia ajudar?
– Sim, Irmã.

Virou-se para o outro homem que o acompanhava e disse-lhe qualquer coisa em macua e lançaram-se de imediato ao trabalho, sob supervisão do Sr. Rafael que, de súbito, se tinha tornado num homem diferente. Composto, responsável, absolutamente em controlo da situação, comandando a “operação pneu” como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. Ainda fiquei uns minutos a observar tudo, com medo que o Sr. Rafael fizesse alguma asneira e os homens se magoassem, mas ele estava totalmente transfigurado. Era notório que os homens nunca tinham trocado um pneu antes, já que o Sr. Rafael tinha de lhes mostrar, exemplificando, como é que se faziam os gestos mais básicos. Mas mesmo com os movimentos desajeitados de quem está alcoolizado, as instruções eram certeiras e o processo ia decorrendo na perfeição. Quando me voltei para ir ver as meninas, o Sr. Cachimbo já estava de roda delas, tinha conseguido convencer a mãe a dar de mamar à mais nova e preparava-se para lhes fazer o teste rápido da malária.

– Sr. Cachimbo, que ideia maravilhosa ter trazido testes rápidos!
– Eu ando sempre com alguns, Doutora. Nunca se sabe se vamos encontrar alguém que precise…

Ah, aqueles homens no seu melhor! Moçambique no seu melhor! Sorri, agradecida por aquele momento de tranquilidade e, de repente, voltei a ouvir o silêncio da savana e a sentir o cheiro do mato.
 
(continua...)

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