10
Out11
[vozes brancas* #53] olhe, se faz favor, era uma cadeira para a dona alda!
beijo de mulata
Hoje tive na consulta mais uma bebé com uma malformação grave do aparelho urinário. Uma daquelas malformações que nunca são diagnosticadas antes de nascer, que deixam os pais inicialmente horrorizados, depois perplexos e por fim deprimidos e receosos de tudo... E quando por fim se mentalizam de que os filhos são meninos normais, lá vem mais uma das dezenas de cirurgias que têm de fazer ao longo da vida para os fazer vacilar e abanar-lhes de novo a confiança.
O meu trabalho não é tratar-lhes as malformações. Felizmente para os menino isso é trabalho para os cirurgiões, que eu nem uma orelha sei anestesiar, quanto mais fazer cirurgia reconstrutiva...
A menina de hoje chegou-me à consulta já com um mês e meio. Um mês e meio de internamentos, cirurgias, infecções, complicações de todos os tipos e de todos os tamanhos e feitios... e a mãe, uma mulher madura e mãe de terceira viagem, chegou-me chorosa, com mil dúvidas e angústias. Vinha a zeros no conhecimento sobre a doença. Nem o nome da malformação sabia dizer apesar de ter uma licenciatura e ser claramente uma mulher inteligente.
No internamento já lhe tinham explicado tudo várias vezes, mas obviamente na altura não estava em condições de perceber o que quer que fosse enquanto a menina não estivesse livre de perigo e ao seu cuidado... Antes disso a sensação é de irrealidade. As mães estão ali mas na maior parte das vezes só estão a tentar sobreviver. São reacções normais. Por isso não achei estranho que tivesse de lhe repetir pela enésima vez que doença era, do que se tratava, que implicações tinha... Só comecei a ver o caso mal parado quando me começou a perguntar se a menina podia fazer vacinas ou se mais tarde haveria de comer normalmente.
- Comer normalmente? Sim, claro!
- Mas comer tudo, assim... mastigar... e engolir?
- Claro! Nesse aspecto é uma menina normal!
- E acha, Doutora... que ela algum dia vai...
- Se vai ter filhos?
- Não, já nem pergunto isso... Se vai...
- Sim?
- Se vai... andar?
- Claro! Ela é uma menina normal, só o aparelho urinário é que não funciona bem, mas tudo o resto é normal. E vai melhorar com o tempo e com as cirurgias.
Vi-a abanar a cabeça e baixar o olhar...
- Só está a dizer isso para me animar, não é?
Ó valesse-me Santa Rita de Cássia... Como é que eu lhe podia explicar? Foi então que me saiu a sorte grande: os pais da Sofia, uma menina de 8 anos com a mesma doença, bateram-me à porta para me dar um beijinho. Tinham ido a outra consulta e passaram por ali para me visitar e mostrar-me o resultado da última cirurgia. A Sofia vinha eufórica! Há dois meses que andava sem fralda e sem algália e tinha passado parte das férias em casa de amigas, calmamente na galhofa até às tantas sem ter de se preocupar com fraldas, cremes, pomadas, cheiros, tubos e sacos.
- Ah, ainda bem que vieram! Anda cá, Sofia, queres vir ver uma menina que tem a mesma doença que tu? Os pais dela vão gostar de ver uma menina já crescida e tão despachada.
Convidei a família para entrar no gabinete.
- Estás tão bonita, Sofia! E esse vestido fica-te tão bem!
- Está a ver, Doutora! Agora anda mais menina, finalmente - dizia a mãe com um sorriso. - Isto já devem ser as hormonas da puberdade!
- Não diga isso, mãe... Ela sempre foi tão menina, sempre foi ao ballet, à ginástica, sempre foi a festas e gostou de vestidinhos... - Fiz questão de frisar tudo isto para a mãe da bebé ouvir.
- Sim, Doutora, é verdade, mas era diferente, antes não era tão mimosa, não era tão menininha...
- Mas antes com a algália ela devia sentir-se inibida, coitadinha... - Dizia a mãe da bebé, já com um meio sorriso de quem finalmente pressentia que afinal havia esperança, mas a imaginar o sofrimento e os complexos que na sua cabeça a Sofia teria tido necessariamente.
- Nada disso! - Respondia a mãe da Sofia. - Nem imagina! Ela sempre foi uma bem disposta.
- Sim - ajudava eu -, uma força da natureza!
- Pois... na altura da algália até lhe comprámos uma bolsinha cor de rosa para ela a levar à cintura sem se notar, mas a maior parte das vezes fartava-se e andava com ela na mão. Fazia tudo, corria, jogava à apanhada e às escondidas com ela. E quando a chateavam ameaçava os colegas com o saco da algália!
- Então, dava-me mais jeito andar com ela na mão... Mas só os ameaçava na brincadeira, mãe. - A Sofia, com um sorriso reguila.
- Pois, pois, Sofia... E a algália até tinha um nome. Era a Dona Alda! - A mãe quase ria às gargalhadas de se lembrar.
- Isso era só às vezes, mãe...
- Ai, mas às vezes parecia que até fazia de propósito. Então quando íamos a restaurantes finos ela chamava os empregados e pedia toda empertigada: "Desculpe, precisava de uma cadeira para a minha algália, por favor!" E depois apresentava-a: "Boa noite, esta é a Dona Alda. Sente-se, Dona Alda, faça favor!"
Foi um excelente início! Mandei-os conversar uns minutos para o gabinete ao lado e a mãe da bebé voltou com uma alma nova... E acabámos a consulta a rir à gargalhada. Nem todos os doentes são impagáveis como a Sofia, eu sei. Mas os bons exemplos são para se mostrar e o bom-humor muda muitas vidas!
A vida, meus amigos, é simples. Tenham uma boa noite.
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
O meu trabalho não é tratar-lhes as malformações. Felizmente para os menino isso é trabalho para os cirurgiões, que eu nem uma orelha sei anestesiar, quanto mais fazer cirurgia reconstrutiva...
A menina de hoje chegou-me à consulta já com um mês e meio. Um mês e meio de internamentos, cirurgias, infecções, complicações de todos os tipos e de todos os tamanhos e feitios... e a mãe, uma mulher madura e mãe de terceira viagem, chegou-me chorosa, com mil dúvidas e angústias. Vinha a zeros no conhecimento sobre a doença. Nem o nome da malformação sabia dizer apesar de ter uma licenciatura e ser claramente uma mulher inteligente.
No internamento já lhe tinham explicado tudo várias vezes, mas obviamente na altura não estava em condições de perceber o que quer que fosse enquanto a menina não estivesse livre de perigo e ao seu cuidado... Antes disso a sensação é de irrealidade. As mães estão ali mas na maior parte das vezes só estão a tentar sobreviver. São reacções normais. Por isso não achei estranho que tivesse de lhe repetir pela enésima vez que doença era, do que se tratava, que implicações tinha... Só comecei a ver o caso mal parado quando me começou a perguntar se a menina podia fazer vacinas ou se mais tarde haveria de comer normalmente.
- Comer normalmente? Sim, claro!
- Mas comer tudo, assim... mastigar... e engolir?
- Claro! Nesse aspecto é uma menina normal!
- E acha, Doutora... que ela algum dia vai...
- Se vai ter filhos?
- Não, já nem pergunto isso... Se vai...
- Sim?
- Se vai... andar?
- Claro! Ela é uma menina normal, só o aparelho urinário é que não funciona bem, mas tudo o resto é normal. E vai melhorar com o tempo e com as cirurgias.
Vi-a abanar a cabeça e baixar o olhar...
- Só está a dizer isso para me animar, não é?
Ó valesse-me Santa Rita de Cássia... Como é que eu lhe podia explicar? Foi então que me saiu a sorte grande: os pais da Sofia, uma menina de 8 anos com a mesma doença, bateram-me à porta para me dar um beijinho. Tinham ido a outra consulta e passaram por ali para me visitar e mostrar-me o resultado da última cirurgia. A Sofia vinha eufórica! Há dois meses que andava sem fralda e sem algália e tinha passado parte das férias em casa de amigas, calmamente na galhofa até às tantas sem ter de se preocupar com fraldas, cremes, pomadas, cheiros, tubos e sacos.
- Ah, ainda bem que vieram! Anda cá, Sofia, queres vir ver uma menina que tem a mesma doença que tu? Os pais dela vão gostar de ver uma menina já crescida e tão despachada.
Convidei a família para entrar no gabinete.
- Estás tão bonita, Sofia! E esse vestido fica-te tão bem!
- Está a ver, Doutora! Agora anda mais menina, finalmente - dizia a mãe com um sorriso. - Isto já devem ser as hormonas da puberdade!
- Não diga isso, mãe... Ela sempre foi tão menina, sempre foi ao ballet, à ginástica, sempre foi a festas e gostou de vestidinhos... - Fiz questão de frisar tudo isto para a mãe da bebé ouvir.
- Sim, Doutora, é verdade, mas era diferente, antes não era tão mimosa, não era tão menininha...
- Mas antes com a algália ela devia sentir-se inibida, coitadinha... - Dizia a mãe da bebé, já com um meio sorriso de quem finalmente pressentia que afinal havia esperança, mas a imaginar o sofrimento e os complexos que na sua cabeça a Sofia teria tido necessariamente.
- Nada disso! - Respondia a mãe da Sofia. - Nem imagina! Ela sempre foi uma bem disposta.
- Sim - ajudava eu -, uma força da natureza!
- Pois... na altura da algália até lhe comprámos uma bolsinha cor de rosa para ela a levar à cintura sem se notar, mas a maior parte das vezes fartava-se e andava com ela na mão. Fazia tudo, corria, jogava à apanhada e às escondidas com ela. E quando a chateavam ameaçava os colegas com o saco da algália!
- Então, dava-me mais jeito andar com ela na mão... Mas só os ameaçava na brincadeira, mãe. - A Sofia, com um sorriso reguila.
- Pois, pois, Sofia... E a algália até tinha um nome. Era a Dona Alda! - A mãe quase ria às gargalhadas de se lembrar.
- Isso era só às vezes, mãe...
- Ai, mas às vezes parecia que até fazia de propósito. Então quando íamos a restaurantes finos ela chamava os empregados e pedia toda empertigada: "Desculpe, precisava de uma cadeira para a minha algália, por favor!" E depois apresentava-a: "Boa noite, esta é a Dona Alda. Sente-se, Dona Alda, faça favor!"
Foi um excelente início! Mandei-os conversar uns minutos para o gabinete ao lado e a mãe da bebé voltou com uma alma nova... E acabámos a consulta a rir à gargalhada. Nem todos os doentes são impagáveis como a Sofia, eu sei. Mas os bons exemplos são para se mostrar e o bom-humor muda muitas vidas!
A vida, meus amigos, é simples. Tenham uma boa noite.
* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.