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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

31
Out11

[as melhores do serviço de urgência] um "princípio de apendicite"

beijo de mulata
Ontem à noite lembrei-me deste maravilhoso post da Paracuca*, a propósito de uma mãe que me disse que a filha tinha estado internada no ano passado com um "princípio de apendicite".

Não há nada que mais irrite um médico do que alguém dizer que teve "um princípio de qualquer coisa". E não há nada que mais me deixe comprometida do que eu própria dizer "o seu filho está com um princípio de pneumonia". Eu não o deveria dizer, eu sei. Mas às vezes as pessoas com quem falo não sabem ler sequer e até têm dificuldade em identificar correctamente onde raio é que ficam os pulmões, quanto mais pronunciar a palavra "pleumonia" ou compreender o que lhes estou a dizer.** Tenho a certeza de que se lhes dissesse, ainda que trocando por miúdos, que "o menino tem uma infecção respiratória viral com uma provável sobreinfecção bacteriana", não me compreenderiam. Por isso os clássicos "tem uma manchinha no pulmão" e "é um princípio de pneumonia" de vez em quando também me saem... Mea culpa, mea tão grande culpa...

Mas há pais que eu sei que conseguem compreender e portanto, a esses exijo-lhes princípios e não lhes admito "princípios" de doença nenhuma. E ontem, quando estava a explicar que "princípio de apendicite" era coisa que não existia, a mãe teve uma saída impagável. E na mouche:

- Pois, estou a ver. É mais ou menos como a minha sobrinha de 3 anos que ontem caiu para trás e disse que tinha dado "um bocadinho de bate-cu".
- Precisamente! É esse o espírito!


* Esta princesa há meses que não escreve, mas prometeu que voltava. E, Dra. Muxy-Muxy, não se esqueça, "ajoelhou, tem que rezar!"
** Para saber mais sobre este tema, há ali na coluna da direita todo um conjunto de posts com o tag "a minha vida dava um filme cigano".
30
Out11

[as melhores do serviço de urgência] the dark side of the cough

beijo de mulata
Hoje é sábado, em pleno fim de semana prolongado e joga o Benfica. "Humpf, um Benfica-Olhanense faz este efeito na afluência ao Serviço de Urgência?", duvidava o meu chefe de equipa. Mas sim, lá veio depois a admitir, contra factos não há argumentos. E quando joga o Benfica toda a gente sabe que os hospitais ficam desertos. Até a natalidade diminui temporariamente (ainda mais), que os pais fazem tudo por tudo para acabar de ver o jogo: "Ó querida, aguenta aí as contracções só mais um bocadinho que estamos a ganhar!"

Já no final do jogo veio um bebé de nove meses com uma dificuldade respiratória intensa. O pai vinha com ele ao colo, muito preocupado:

- Doutora, eu estava a ver o jogo, mas nem aguentei mais. O menino está-me com esta respiração e eu estou preocupadíssimo.
- Pois, está com pieira e tem falta de ar.
- Pieira? Ah, é assim que se diz?
- Sim, estes gatinhos que se ouvem, esta espécie de chiar.
- Exacto, é isso! Eu telefonei à minha mulher e só lhe conseguia explicar que ele estava com uma tosse horrível e uma respiração assim "à Darth Vader".
- Bem, com essa descrição... qualquer um o mandava para o hospital!

[Os pais de hoje são tão filhos dos anos 80...]
26
Out11

[outras palavras] porque assim como assim ainda há muita gente que come

beijo de mulata
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.
M. Cesariny de Vasconcelos (a propósito da notícia abaixo, que me deixou louca...)
26
Out11

[das coisas que me deixam louca] o importante não é haver gente com fome...

beijo de mulata
Ontem fiquei louca, absolutamente fora de mim com esta notícia, citada pelo Professor. Então não é que o Director Nacional da Agricultura de Moçambique, um tal de Momed Valá* de quem nunca tinha ouvido falar, veio a público dizer que não acha que o problema da fome em Moçambique seja alarmante, como refere o relatório da FAO deste ano?

E vai mais longe: diz que não há ninguém que possa provar que nos últimos anos se tenha morrido de fome em Moçambique! "Agora, que haja problemas de subnutrição no mundo rural, concordo, aí podemos falar juntos. Mas não há nenhuma pessoa na Zambézia e em Nampula, por exemplo, que não tenha acesso à mandioca para comer. Mas a mandioca só resolve o carbohidrato e continuamos a ver crianças subnutridas porque estão pouco vitaminadas.”, acrescentou.

E continua: que não se pode confundir fome com desnutrição. Que se pode percorrer o país do Rovuma ao Maputo e não encontrar nenhum caso de fome. Que ele próprio teve um trabalho titânico mas que conseguiu que se passasse a comer tomate na província da Zambézia. E que em Nampula a população está muito melhor porque já come xima com molho e não apenas com peixe seco, como antes (!).

Mas o que é isto, valha-me Deus? Não sei o que me assusta mais, se a mentira descarada, se a confusão absolutamente imperdoável de conceitos, se a ignorância que demonstra ao canalizar esforços para objectivos tão desadequados. E é o homem que está à frente da agricultura do país...

* É que nem sequer me apetece fazer trocadilhos com o nome de tão estupefacta que estou.
26
Out11

[disclaimer do disclaimer] a vida emocional dos pinguins...

beijo de mulata
Interrompemos novamente a emissão para colocar uma vez mais os pontos nos ii. Desta feita, haja o que houver, será a última vez. Meus queridos amigos, este blogue não tem um único destinatário. Se tivesse um único destinatário o blogue não seria público, não teria caixas de comentários abertas e não teria um mail. É certo que os leitores não têm direito a reclamar, mas isso é porque o Sr. Pompisk (para ele um grande abraço) também não tem um livro de reclamações na sua barraca do Gilé*. E eu gosto muito das pessoas que vêm aqui partilhar comigo um pouco deste mato africano. Muito mesmo.

Mas há duas ou três pessoas para quem escrevo em especial. Não sei se vêm aqui ou não, mas tenho esperança que sim, que venham também de vez em quando ter comigo. E o post dos pinguins mesmo aqui abaixo, aparentemente tão nonsense, era dedicado a uma delas. Apenas isso. Podem parar de matar a cabeça com a vida emocional dos pinguins. E sobretudo não percam o vosso tempo, por favor, a pensar na minha opinião sobre a vida interior dos bicharocos ou sobre a vida privada daqueles casalinhos monogâmicos encantadores... Era só uma private joke. E queria apenas dizer "gosto muito de ti, não penses que eu queria dizer outra coisa".

Quanto à história da viagem para Nampula, eu só prometi que escrevia até chegar ao destino. O que se passou a seguir foi tão complexo que duvido que o consiga contar... Não me estou a fazer de difícil (no fundo isso transpira por todas as letras: eu sou uma mulher fácil!), a história é que é quase impossível...

* Para os que só chegaram agora, basta seguir o tag Sr. Pompisk ali na coluna da direita e ficam a perceber por que é que esta afirmação não faz qualquer sentido.
24
Out11

[disclaimer] eu gosto de pinguins, tsá?

beijo de mulata


A propósito do post de há pouco, em que está escrito qualquer coisa como: "És mesmo uma mulher básica! Um homem pode fazer-te juras de amor eterno e dizer que te vai respeitar e tratar como uma rainha que não lhe ligas nenhuma, mas não o podes ver com uma criança ao colo que te derretes logo! Tens a mania de que és uma mulher culta e esclarecida e depois vai-se a ver e tens a inteligência emocional de um pinguim.", queria dizer que o escrevi - e assumo o que escrevi - mas que não era minha intenção destratar os pinguins.

Eu, aliás, não tenho nada contra pinguins. Nem contra a inteligência emocional dos pinguins. E tenho muito respeito pela forma como vivem a família e pela forma como tratam as crias. Mas vocês entendem o que é que eu queria dizer, certo? É que obviamente me recuso a reduzir as relações de amor a uma função meramente reprodutiva. Daí a referência aos pinguins. Para que não venham reclamações.

Pronto, era só isto... Mas enfim, chega de psiquiatrices. Adiante.
24
Out11

[enfim, nampula] sempre chegamos ao sítio onde nos esperam...

beijo de mulata


Os Montes Nairuku num dia de sol...
(Nampula, foto recente amavelmente cedida por uma amiga minha)


(continuando...)

É incrível como às vezes há situações que parece que têm o condão de ir buscar o melhor que há em cada um e ressincronizar o bater dos corações.

Quanto a mim, tinha recuperado o entusiasmo, a vontade de avançar, a tranquilidade. A sensação daquele momento de enleio, em que o Sr. Cachimbo tinha pegado nas meninas assaltava-me de vez em quando, mas repetia para mim: “Não foi nada, não foi nada, está tudo bem, não se passou nada.” E ironizava: “És mesmo uma mulher básica, valha-me Deus, um homem pode fazer-te juras de amor eterno e dizer que te vai respeitar e tratar como uma rainha que não lhe ligas nenhuma, mas não o podes ver com uma criança ao colo que te derretes logo! Como é possível? Tens a mania de que és uma mulher culta e esclarecida, de mente aberta e livre e depois vai-se a ver e tens a inteligência emocional de um pinguim!” E tentava afastar aquela imagem impossível da minha mente.

Já não me preocupava em ir rápido, em chegar antes do pôr-do-sol. Tinha aquelas duas princesas para levar e havia que as transportar em segurança, isso era agora o principal. Ia mais devagar ainda mas não me importava, tinha mais tempo para me desviar dos buracos e dos outros carros. Até os chapas me pareciam menos agressivos… Era preciso parar de vez em quando, reavaliar as meninas, preparar mais soro, ver-lhes a temperatura, colocar-lhes repelente porque estava a anoitecer... Elas iam lentamente recuperando do estado de letargia em que se encontravam e, de cada vez que parávamos, o Sr. Cachimbo tinha melhores notícias. “Desde que parámos da última vez já beberam mais 200 mL cada uma!” “Ainda não voltaram a ter diarreia desde a outra vez lá atrás.” “A mais velha já se tentou pôr de pé e agora está aqui a brincar com o meu rádio!”

O dia terminava, o sol punha-se à minha esquerda e eu finalmente tinha tempo e espírito para apreciar a paisagem. Conduzir à noite era, de facto um desafio perigosíssimo, mas com a ajuda do Sr. Rafael, agora acordado e atento, lá íamos ultrapassando as dificuldades. Afinal aquela companhia improvável tinha sido providencial! Já passava da meia-noite quando os deixámos no Hospital Central, com as meninas muito mais hidratadas e ativas, passámos pelo bairro de Namutequeliwa (sim, o da barbearia Alvalade XXI) para deixar o Sr. Cachimbo e chegámos a casa das Irmãs, em Muahivire, exaustos mas com a sensação boa de quem tinha sobrevivido a uma prova de fogo… As Irmãs abriram-me a porta em camisa de dormir e estremunhadas. Só me esperavam no dia seguinte e ficaram assustadas de me ver chegar sem a Irmã Lurdes.

– Então, mas o que foi que lhe aconteceu?
– A Irmã Lurdes teve de ficar em Iapala a tomar conta de uma menina que adoeceu com malária cerebral. Mas tive um furo num pneu e tive de esperar que alguém nos ajudasse – disse simplesmente, preferi resumir a história.
– Mas… veio sozinha?!
– Não, vim com o Sr. Rafael.
– Onde é que ele está?
– Foi dormir para casa do guarda.
– Está bem, já tínhamos preparado o vosso quarto. Já jantou?
– Não, mas não quero nada, obrigada! Só preciso de uma cama, que estou a cair de sono…

(não sei se continue...)
24
Out11

[as melhores do serviço de urgência] perturbações do sono...

beijo de mulata
- A sua menina alguma vez foi operada a alguma coisa?
- Sim, foi operada às "agnóides" quando tinha três aninhos...
- Foi operada aos adenóides e também pôs tubos nos ouvidos?
- Não, Doutora, foi só às "agnóides" porque o que ela tinha era "as peneiras" do sono...
- Tinha o quê?
- Tinha "as peneiras" do sono.
- Ah... parava de respirar?
- Sim, isso.

[As peneiras do sono... Isto é genial! Era uma menina simples durante o dia, o problema é que dormia com a arrogância de quem sonha...]

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