Há uns meses tivemos uma menina nos cuidados intensivos com uma meningite de caixão à cova. Daquelas que metem coma de vários dias, alterações neurológicas difíceis de compreender mas tão persistentes que achamos que já não vão melhorar, bactérias resistentes aos antibióticos, várias cirurgias de drenagem. E medos e ansiedades e revoltas e perplexidades.
Tinha sido uma menina muito desejada, mas que tinha nascido sem esperança nenhuma, com os pais já a fazer o luto da criança que nunca teriam... No final da gravidez o cérebro da menina foi desaparecendo, comprimido contra as paredes do crânio por um mar violento que não tinha fim. Hidrocefalia, diziam os obstetras... Dandy-Walker, acrescentavam os Neurocirurgiões... Os pais não diziam nada...
O parto tinha sido um suplício, num desespero de quem tem a noção perfeita de que para sair viva daquela dor precisa de dar o seu melhor, mas que, por mais que se esforce, tudo quanto vai ter no final é um ventre vazio... Só que, contra todas as expectativas, a menina começou a respirar sozinha quando nasceu e portanto foi levada para ser operada e tentar abrir alguns canais naquele mar morto que lhe tinha nascido na cabeça e que tinha alagado a alma dos pais. Operavam-na porque ela tinha sobrevivido. Continuava a não haver esperança nenhuma a longo prazo. Mas que pelo menos a cabeça não crescesse tanto que ficasse a pesar muito mais que o próprio corpo, tinham-lhes explicado. Apenas para isso. Para que pudessem cuidar dela até ao fim...
Mas nos dias seguintes, um milagre foi acontecendo. Depois da cirurgia, o cérebro da menina, que tinha uma espessura de milímetros à nascença, foi-se expandindo até conquistar novamente o espaço que lhe tinha sido roubado e arrastado contra o crânio pela força das águas. Os pais, que nunca tinham arredado pé, iam olhando para ela, à medida que abria os olhos e esboçava um sorriso e se mexia e bocejava... e comia... E iam, quase a medo, acreditando que era possível. Nós não queríamos acreditar. Nós por fim só nos rendemos à evidência!
[E mais uma vez ficava provado que aquela massa, que só quem é muito crédulo acredita que é cinzenta, porque é vermelha, cor de sangue vivo, como quase tudo o que é nosso da pele para dentro... que aquela massa vermelha é o cimento de que se constrói a alma de uma criança. E é a pintura que pode dar brilho às almas dos pais.]
(continua)