Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

30
Set11

[angústias de mãe] diversificação alimentar...

beijo de mulata
Telefonema insistente a meio da tarde no domingo passado... A mãe de um menino de 9 meses, felizmente saudável e com uns pais bem dispostos, liga-me com uma voz muito comprometida.

- Doutora, desculpe incomodá-la, mas estou muito angustiada...
- Então? Diga...
- É que quando ele começou a comer papas e sopa, a Doutora disse-nos que não devíamos introduzir dois alimentos diferentes pela primeira vez no mesmo dia...
- Sim, é verdade... Mas então?
- É que hoje introduzimos... quer dizer, foi um acidente...
- Pronto, deixe estar, acontece... ele também nunca fez alergia a nada. Se ele não tiver reacção nenhuma não faz mal. Mas e o que foi que introduziu hoje?
- Hoje demos-lhe salmão pela primeira vez e ele gostou imenso. Mas há coisa de dez minutos fui dar com ele a gatinhar pelo chão da cozinha e estava a comer a comida da cadela...
27
Set11

[et in iapala ego] a missão dos incomunicáveis...

beijo de mulata

No pátio da casa do nosso cozinheiro...
(Iapala, Nampula)

A primeira vez em Iapala foi dura... Uma missão a 200 km de Nampula, já depois do ano dos encantos de primeira vez em África. Era difícil estar incontactável e longe. Tanto mais que deixei um dos meus melhores amigos a sofrer por um amor traído (sim, esse mesmo, o dos soluços!) e não tinha a certeza se ele tinha conseguido dar a volta por cima. E estava com a desconfortável impressão de que alguma coisa de terrível poderia ter acontecido a alguém da minha família sem que eu pudesse ter sabido… Às vezes desabafava estes desassossegos com o Padre Filomeno e ele olhava-me nos olhos:

- Está tudo bem. Podes ter confiança porque está tudo bem. Aqui o tempo passa mais lentamente. A vida é toda mais intensa. África muda-nos. Por isso parece-nos que em nossa casa já tudo pode ter mudado também, mas não é verdade. Lá é que está sempre tudo na mesma. Nós ligamos e é como se tivéssemos ligado no dia anterior.

As suas palavras tinham o condão de me acalmar por algum tempo... Mas depois voltavam as inquietações...
25
Set11

[vozes brancas* #51] o meu pai é até ao céu!

beijo de mulata
Serviço de urgência, sete da tarde de um dia de semana, a hora de ponta de qualquer urgência de pediatria que se preze... Duas médicas e duas crianças com as respectivas mães no mesmo atravancado gabinete de consulta, mais dois ou três doentes e respectivos pais à porta, esperando uma reavaliação. E choros e gritos e tosses e conversas e risos e correrias e nós: "Vá lá buscá-lo que ele fugiu para o corredor!", e eles: "Quero ir para casa!" e "Quero a avó!" e nós: "Pode ir levá-lo à avó, então, que já não precisamos dele aqui. Vá lá enquanto eu passo a receita." e eles: "Não quero xaropes!" e "Quero ficar aqui com a mãe!" e "Tenho sede!" e "Não quero soro, quero água!" e os outros pais: "Veja lá se falta muito para o meu filho ser atendido." e "Já estou aqui há uma hora e houve meninos que chegaram depois e passaram à minha frente, lá porque estavam com falta de ar... o meu também está com febre e ninguém me liga nenhuma!"

E nós a enchermo-nos de paciência porque ninguém tem culpa daquelas condições e ninguém está ali por gosto e ninguém disse que era fácil criar um filho, mas já estamos há dez horas metidas naquele inferno sabendo que ainda faltam mais dez para irmos descansar... E ainda a procissão vai no adro.

Mas mal voltamos costas e já os dois meninos se engalfinharam, numa disputa que não fazemos o menor esforço para compreender: "Não! Não troquem vírus, vamos acabar com isso já!" As mães, claramente cansadas, pegam-lhes ao colo, num último esforço para que não fujam e os possam manter debaixo de olho, enquanto recebem as últimas recomendações. Mas a contenda não ficou resolvida e, do alto do colo das respectivas mães, enquanto se debatem com uma raiva felina para reconquistar o chão e a liberdade de movimentos que lhes pertence, proferem impropérios e ameaças.

- Se eu quiser vou chamar o meu pai para te prender, que ele é polícia!
- E se eu quiser vou chamar o meu para dar uma tareia no teu, que o meu pai é muito mais grande!
- O meu pai é que é maior que o teu!
- Não é nada! O meu pai é até ao céu!
- Mentiroso! Ó mãe, ele é um mentiroso! Não há pessoas até ao céu, pois não?

A mãe, suspirando: "Sim, sim, filho, está bem..." A outra mãe tentando calar o filho, ligeiramente incomodada com aquelas fantasias...

- Toma! Tás a ver? Não há pessoas até ao céu! Toma!
- Ah, mas o meu pai é muito mais grande que o teu!
- E o meu pai é polícia, toma! O que é que o teu pai é?
- É bombista! Toma!
- "Bombista", o que é isso?
- Trabalha nas bombas!

Calámo-nos todos. A mãe a olhar para ele, muito envergonhada com o que o filho acabou de dizer e mal acreditando na nossa reacção. ["Eh lá... Um bombista aqui na urgência?!"]

- Ó filho, a mãe já te explicou que não é bombista que se diz. Ó Doutora, não faça caso, o meu marido trabalha é numa bomba de gasolina...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
25
Set11

[outras palavras] inspiração para uma despedida...

beijo de mulata

Mulher na rua...
(Maputo)
Foto daqui, agora que passa um ano sobre a onda de violência contra o aumento do custo de vida, que no ano passado encheu hospitais e morgues em Maputo...

A Moça das Docas

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes, lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,

Viemos...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança,

Viemos...
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba* já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos....
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,
saciaram generosamente fomes e sedes violentas...
Nossos corpos pão e água para toda a gente.

Viemos...
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta...

E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade...
E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool,
voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável...

Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios!
Piedade não trará de volta nossas ilusões
de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Piedade não é para nós.

Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres!
Noémia de Sousa, a mãe de todos os poetas moçambicanos.

* Xituculumucumba (do Xironga) - Papão; animal imaginário (fêmea) com um olho, um braço e uma perna que os adultos usam para assustar as crianças. Isto é para não dizerem que aqui no mato não se aprende nada...
20
Set11

[outras palavras] alves redol

beijo de mulata
Já Alves Redol no seu Constantino tinha uma opinião parecida com a minha no post aqui abaixo. Se bem que menos ruminativa...
"Por voto do padrinho e assentimento dos pais, o rapaz recebeu no registo o nome de Constantino. É um nome bonito, sim senhor. Na aldeia não há outro igual, e isso é bom, pensou a mãe; escusa uma pessoa de matar a cabeça como em certas casas em que os homens usam o mesmo nome e ninguém se entende. Na Chamboeira conheceu ela uma mulher, a Ti Pirralha, metida num inferno de portas adentro por causa de o marido, o filho e o neto se chamarem António.

Enquanto o rapaz foi pitorro, tudo correu bem. Um era o António Grande, o outro só António e o mais novo o António Pequeno, O rapaz porém, deitou muito corpo, e depressa, enquanto o avô continuou cartaxinho, cartaxinho e melindroso, pois começou a pôr-se de vidro fino quando a mulher lhe chamava Grande, vendo nisso uma artimanha dela para se vingar de certas desfeitas que lhe fazia quando bebia um copo a mais.

«Grandes são os burros», refilava então o velho, muito rezingão, com reumático nas cruzes, umas dores parvas como dentadas de lobo. Mas andou tudo raso naquele casal quando a Ti Pirralha o tratou por António Velho para chamar Novo ao neto, o que incendiou o marido, e de tal jeito que a mulher teve de se esconder três dias em casa duma vizinha.

«Velhos são os trapos!», gritava o António Pirralha chamando corja ao povo inteiro da sua aldeia – que não gostava muito dele, valha a verdade.

Foi isto mais ou menos o que a mãe do Constantino lembrou ao marido para defender o nome escolhido pelo compadre."
20
Set11

[aviso] ignore este aviso!

beijo de mulata
Meus queridos amigos, serve este pequeno parêntesis para vos explicar que aqui no mato não possuímos livro de reclamações, tal como está patente ali ao fundo, do lado esquerdo daquele exíguo mapa onde se pode acompanhar o crescimento deste improvável beijo de uma mulata que, por acaso, e ao fim de todas as contas, não é mulata nem nada. E, que se formos bem a ver, também não é beijo coisíssima nenhuma, mas adiante, que há coisas que não se devem pôr em causa e os beijos das mulatas são uma delas. Os beijos das mulatas são sempre de coração. Mesmo das mulatas que só são mulatas por dentro.*

Mas o que eu vos queria dizer é que nós aqui no mato, não possuímos livro de reclamações. Pode alguém reclamar de um beijo, homens de Deus? De um beijo não se reclama, nem que seja roubado. Bem... sobretudo se for roubado... E pode alguém repudiar uma flor? Mesmo que seja só uma flor fingida, enterrada num balde de gelo, meus amigos, ou que tenha nascido nos confins da savana, uma flor é sempre uma flor!

E há ainda outras razões para não termos livro de reclamações. Nenhuma delas minimamente defensável, mas enfim, são as nossas. E quem dá o que tem, a mais não está obrigado, não é assim? Em primeiro lugar porque o Sr. Pompisk, padrinho honoris causa deste mato, também não possui um livro de reclamações.

[Para os que só chegaram agora, ou para os mais distraídos, há todo um conjunto de hiperligações ali numa das colunas da direita, onde se fala sobre o Sr. Pompisk (para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço), embora, infelizmente, acho que não se fique a saber rigorosamente nada sobre ele. Ou bem... quase nada... Uma das coisas que ostensivamente não se fica a saber é a razão obscura pela qual a sua barraca "Só Basta Viver" no Gilé não possui um livro de reclamações. Mas isso, presumo, é lá com ele. Com ele e com a barraca dele...]

E enquanto o Sr. Pompisk não tiver um canhenho, por pequeno que seja, onde, honesta e dignamente, um cliente possa destilar todo o fel que guarda em segredo na sua alma contra aquele negócio, nós também não nos achamos no direito de o ter. E, por último, achamos assim um bocado idiota ter um livro de reclamações num blog. É sobretudo isso.

Por isso, meus caros, estas ruminações bloguísticas servem para dizer que não adianta mandarem mails atrás de mails para aquele endereço que está mesmo a pedi-los, justamente por debaixo do aviso de que este blog não possui livro de reclamações, a reclamar sobre a minha mania de falar sobre nomes de pessoas quando podia estar a falar de coisas sérias e a fazer serviço público, porque eu continuo a achar que é um excelente tema de conversa. Só vou responder à simpática senhora que observou que os três pequenos freaks mencionados no post abaixo, os irmãos Faquir de Domingo, Milagre de Domingo e Vidêncio de Domingo, não tinham necessariamente de ser filhos de um senhor chamado Domingo. A sua tese é que eles podiam perfeitamente ser filhos de um weekend man que projectasse na descendência todo o seu exotismo de fim de semana. E, portanto,"de Domingo" poderia perfeitamente ser nome próprio.

Podia, é verdade. Mas não, cara leitora, "de Domingo" neste caso não é nome próprio. Em Moçambique, pelo menos nas zonas de mato por onde trabalhei (suspeito que noutras províncias e nas grandes cidades não seja assim), o apelido das crianças não é o apelido do pai, mas o seu primeiro nome. A título de exemplo, o filho do senhor Ozias Trinta chamar-se-á José Ozias e não José Trinta. E não vejo qualquer inconveniente nesta prática. Pelo contrário. Assim obvia-se a confusa tradição que é dar ao filho o nome do pai sob pena de a criança ficar com o nome ridículo de João João ou coisa que o valha. Que isto de nomes repetidos é coisa que mais tarde ou mais cedo acaba por trazer desordem na família.

*O aviso que chama a atenção para a inexistência de um livro de reclamações está lá em baixo, confiem em mim, vão lá depois, que se não nunca mais saímos disto... Pronto, sim, logo vi que não bastava uma nota de rodapé, está mesmo ao lado do mapa das bolinhas vermelhas, onde até se pode constatar que os beijos de mulata têm, como se quer, uma especial apetência por zonas soalheiras e assim pertinho do mar e que se reproduzem desenfreadamente, pior que uma erva daninha, meus amigos, é o que vos digo... mas agora voltem cá para cima, que diabo! Até parece que têm bichos carpinteiros!
18
Set11

[nomes que dizem tudo #22] uma família de exóticos!

beijo de mulata



Meus amigos, no meio de um trabalho hercúleo que tenho para fazer no fim de semana, venho aqui partilhar convosco que esta manhã recebi informações sobre os meninos de Nampula que são apoiados pelos padrinhos em Portugal e descobri, lá pelo meio, uma família absolutamente impagável. Todos com nomes bastante comuns na região, comuns o suficiente para ter ficado com a certeza de que a combinação não foi propositada (sim, quero acreditar que nenhum pai faria isto de propósito à própria descendência).

Filhos certamente de um tal de Domingo, os meninos chamam-se, por ordem de nascimento: Faquir de Domingo (tentativa de ilustração acima), Milagre de Domingo e Vidêncio de Domingo.

[E poderíamos abrir aqui um longo parêntesis especulando o que fariam estes meninos durante os outros dias da semana, mas infelizmente, não temos tempo...]

Pág. 1/3

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub