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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

31
Ago11

[estado em que se encontra este blog] de trombas!

beijo de mulata

Um elefante. Literalmente de trombas.
(Kruger Park, África do Sul)

"Entre falar e calar, um elefante preferirá sempre o silêncio, por isso é que lhe cresceu tanto a tromba que, além de transportar troncos de árvores e trabalhar de ascensor para o cornaca, tem a vantagem de representar um obstáculo sério para qualquer descontrolada loquacidade."
José Saramago in A Viagem do Elefante
28
Ago11

[outras palavras] paulina chiziane

beijo de mulata
Entrevista com Paulina Chiziane. Uma delícia para quem se interessa por Moçambique e pela condição da mulher nas sociedades em geral. Daqui.

Paulina Chiziane fala baixo, como se ninasse um bebê. É escritora e trabalha em um programa das Nações Unidas para a promoção da mulher na Zambézia, uma das províncias de Moçambique. Hoje está vestida como manda a tradição: uma roupa colorida, feita com panos de capulana.


Conversamos em uma tarde de sol, na pensão em que me hospedei em Quelimane, capital da província. Ela fala da condição da mulher, das diferenças que existem entre as regiões do país, das influências que recebeu para se interessar pela luta das mulheres. Seu único livro publicado no Brasil, pela Companhia das Letras, se chama Niketche: uma história de poligamia.

Como começou a sua luta pelos direitos da mulher em Moçambique?

Paulina Chiziane (PC): Nas sociedades como a nossa, onde há guerras, catástrofes, migração assídua, os homens vão embora. As mulheres ficam e são elas que movem a vida. Mas quando chega a hora de retratar a mulher, de lhe dar algo, os homens são ausentes. Constato isso por toda minha vida. Descubro que existe o mundo da mulher que ninguém conhece ou que poucos conhecem; ou que só as próprias mulheres conhecem. Há de ser por isso que entrei nessa luta.

Você costuma dizer que existe uma diferença grande na relação homem-mulher e na maneira como as mulheres se vêem no sul e no norte do país. Como se dá essa diferença? Isso é marcante ainda hoje?

PC: É uma situação absolutamente atual. Aqui na Zambézia (e daqui para o norte do país) temos cidades marcadamente matriarcais. As mulheres têm voz mais ativa, têm um lugar social e têm algum poder. Por exemplo, quando vou às comunidades rurais desta província encontro histórias de mulheres que dizem: “eu não tenho uma relação sexual com meu marido há dois meses e por isso convoquei uma reunião de família”. Eu nunca tinha imaginado que isso acontecesse, mas aqui no norte acontece. O prazer sexual é um direito importante da mulher e as pessoas falam disso abertamente, nos seus grupos. Convocam a família para expor a situação.

Convocam a família dela ou a do marido também?

PC: A família dela primeiro, para discutir a questão. Depois desse passo, os mais velhos se responsabilizam por levar as informações para a família do marido, propondo uma solução. É incrível. Já no sul do país isso acontece pouco. Se o homem é impotente, não tem um desempenho saudável, a mulher tem que suportar, porque ela foi adquirida para isso, para suportar e mais nada. Até na maneira de se vestir as mulheres do norte são diferentes. Elas têm um colorido que alegra.

O vestuário tem a ver com a relação delas com o marido? Com o pai?

PC: Sim, tem a ver com a visão da vida e do mundo. Para elas a mulher tem que ser bela, alegre, agradável, sexualmente satisfeita. Nós não. Eu sou do Sul, e no sul a mulher tem que dizer “sim” a todas as coisas. A mulher é algo que deve ficar guardado em um cofre ou no guarda-roupa.

E você sabe me dizer qual é a origem dessa diferença?

PC: O sistema matriarcal. A partir da Zambézia, caminhando para o Norte, todas as regiões são matriarcais. A linhagem é pela via feminina. Quando há um casamento é o homem que se desloca para a família da mulher e lá fica, constrói a família e a casa. Quando os filhos nascem ganham o sobrenome da mãe e quando o casamento se dissolve é o homem que parte. As decisões desta região matriarcal não pertencem especificamente à mulher, mas ao irmão dela, ao tio dela. Assim, claro, decidem a favor da mulher. É por isso que elas possuem um estatuto que as mulheres do sul não têm. Também é interessante a abordagem das relações amorosas. No sul, a mulher faz de tudo: penteia-se, pinta-se, faz danças na frente do homem para que ele lhe diga algo. No norte não. A mulher diz ao homem: “gostei de ti, quero casar contigo, tranqüilamente”. (risos) De uma forma aberta, clara. Às vezes chega a dizer: “o senhor passou por aqui e não me viu, mas eu vi e gostei. Quer namorar comigo?” Fiquei chocada no princípio, mas me habituei. Se no sul uma mulher faz isso, recebe os apelidos mais horríveis. No dia seguinte todos falarão mal dessa mulher.

Existe um trabalho grande de conscientização com relação ao vírus HIV: cartazes pelas ruas, desenhos nas calçadas, propagandas na televisão... Esse trabalho alcança a população?

PC: Nós tivemos uma guerra terrível. A guerra acabou, mas agora temos a malária. É impressionante o número de pessoas que morrem com a malária, é impressionante o número de pessoas que morrem com cólera. Valerá a pena fazer a prevenção? Essa é a questão que fica na cabeça das pessoas. Infelizmente, mesmo a campanha sendo tão grande, o número de infectados não pára de aumentar. Acredito que seja por causa disso.

Qual a relação das mulheres com a religião, atualmente?

PC: Quando o país ficou independente, o sistema socialista adotado colocou em causa todas as igrejas e religiões: islâmica, tradicional, cristã. À medida que aumentou a guerra civil, o desespero foi grande e muitas pessoas se voltaram novamente para a religião. Hoje, a igreja tem um peso muito forte. É uma das novas formas de identidade.

E no mercado de trabalho, quais as mudanças para as mulheres?

PC: É um processo. Cada vez mais mulheres vão trabalhar e cada vez em melhores posições. Em toda a história de Moçambique, a mulher nunca esteve tão bem como agora. Somos um dos poucos países africanos onde a posição da mulher em termos políticos e em termos sociais é boa. A libertação nacional colocou a mulher em um campo de batalha, ela participou da guerra: foi o primeiro grande passo. Depois, a orientação marxista colocou a comissão da mulher na agenda política e alterou a legislação. Houve campanhas para a educação das raparigas. Hoje as mudanças são visíveis: temos um bom número de mulheres governando. Temos uma primeira ministra, uma das coisas mais extraordinárias que aconteceu no nosso país. Nas empresas privadas a mulher também conquistou postos de poder. Nas zonas rurais, entretanto, a situação ainda é diferente. As mudanças demoram a chegar. Mesmo assim, há um bom número de mulheres que sabem ler e escrever. Nas zonas matriarcais, há ainda as chefes tradicionais, chamadas de rainhas. A liderança da maior parte dos grupos tradicionais se concentra nessas mulheres. Mas o poder delas não significa riqueza. Entre a casa da rainha e a casa vizinha não se notam diferenças.

E como é a vida dessas rainhas? Qual o papel delas na sociedade?

PC: Em abril fui a uma região afetada pelas cheias, e tive que trabalhar com uma rainha. Quando ela chegou, eu pensei: “meu Deus, mas o que ela tem de rainha?”. Tínhamos que fazer palestras sobre a Aids, porque havia uma concentração de pessoas que não se conheciam, que fugiram das cheias e se concentravam ali. Tínhamos que fazer a distribuição de itens básicos de alimentação e higiene, mas estava uma confusão enorme. Todos queriam ser os primeiros. A polícia estava presente, os chefes formais também, mas ninguém conseguiu controlar a situação. Nesse momento a rainha disse: “sentem-se”. Apenas levantou a mão e todos se sentaram. E completou: “a distribuição será feita por famílias. Vou chamar as famílias da zona do Sol Nascente. Levantam-se!” Levantaram-se somente as famílias chamadas e foram buscar a sua comida, o seu sabão, na maior ordem. “Agora levantem-se os do Sol Poente!” Foi impressionante, não houve quem pudesse controlar a população da forma como aquela mulher fez. Nas crenças da população, essa chefe tradicional (escolhida por linhagem) é uma espécie de guardiã, nomeada divinamente. Para a comunidade, ela é a pessoa que estabelece pontes entre os antepassados (mortos) e os vivos. O poder da liderança feminina tradicional existe nessas regiões. E é único. Tudo isso faz parte da profissão da mulher. Há histórias interessantes que envolvem esse poder tradicional. Lembro-me de uma vez em que havia uma reunião local. Estavam presentes uma ministra e as rainhas tradicionais. A ministra, com todo o poder do Estado e das academias européias, apontou para uma das rainhas tradicionais para que ela se pronunciasse. A mulher simplesmente olhou e não abriu a boca. A ministra insistiu: “é consigo que estou a falar”. Nesse momento se levantaram alguns homens e disseram: “na nossa terra, na nossa tradição, ninguém pode apontar o dedo e ordenar qualquer coisa à nossa divina representante. Ela é nossa rainha!” A ministra não pôde dizer mais nada. Para mim, há momentos em que parece haver inveja, conflitos entre o poder formal e o tradicional. O poder tradicional é muito forte em nossa terra.

Existe alguma representação dos poderes tradicionais no estado formal?

PC: Existe, mas é algo carnavalesco, só para fazer festa.

O principal ponto desse poder é a ponte entre os antepassados e os viventes?

PC: Exato. E é bom ver que as pessoas veneram o seu líder (ou a sua líder), porque é uma pessoa igual a elas, que vive e sofre como elas. Os chefes preferem ficar sem nada para que os outros tenham. Posso me enganar, claro. Os seres humanos são complexos e há pessoas que abusam do poder que têm por causa de suas ambições. Mas, quando comparo os dois poderes...

Sobre o futuro da mulher moçambicana, ainda existem tabus que impedem a igualdade de direitos? Como você vê a sociedade daqui para frente?

PC: Os 30 anos de independência mostraram que a vida da mulher pode mudar para melhor. Ela pode ter um bom emprego, um bom salário etc. Mas também pode piorar, porque a mesma mulher que vai ao parlamento tem de voltar à casa para cozinhar, lavar e cuidar dos filhos. À medida que a mulher tem acesso ao novo mundo e a novos recursos, a sobrecarga na vida dela aumenta. O que está a acontecer com algumas mulheres é que elas lutam, vencem, e o produto do seu trabalho vai para as mãos do homem, que depois diz: “como não tens tempo para estar aqui, fui arranjar a segunda mulher”. Quantos casos de mulheres que eu conheço não são iguais a este? O marido pegou o dinheiro dela para ir casar com uma nova mulher, “porque não tens tempo para lavar, para cuidar de mim... Já que tens muito jeito para trabalhar, vai. Agora arranjei uma para me fazer café, pão”. É a nova escravatura das mulheres. A situação muda na aparência e há sempre outras formas de dominação. As mulheres modernas são máquinas de trabalho, não têm tempo para cuidar da casa. Trazem mais pão, que depois vai para as mãos de uma outra mulher que não trabalha. É um horror! Mas a situação vai melhorar. Temos um governo que defende a posição da mulher, a legislação tende a mudar cada dia para melhor. Ainda ontem assisti à graduação em um curso de formação de médicos, onde 46 pessoas eram mulheres. Isso era impensável há seis anos. Primeiro o diploma, depois o emprego e, por fim, a libertação da escravatura. Já os hábitos tradicionais são muito mais difíceis de mudar, mas a legislação está caminhando e a mudança virá. Estou com otimismo.
26
Ago11

[yo mussi] a minha família

beijo de mulata

Digam-me se não é uma delícia a escolinha comunitária de Murrupula? Construída com donativos e com contribuição da própria comunidade. Mão de obra local. O pintor é o celebérrimo Chico, que foi de Nampula de propósito para pintar as paredes da escolinha voluntariamente.
As crianças vão à escola e ali, em vez de ficarem o dia inteiro sem comer e entregues a si próprias, brincam, dançam, cantam, aprendem a falar português... Algumas têm  padrinhos em Portugal, em Itália, em Espanha, que colaboram com as Irmãs. Outras os pais têm possibilidade de pagar e ajudam as outras crianças da comunidade a integrar-se na escola. Assim, quando chegam à primeira classe não aprendem a ler e a escrever numa língua totalmente desconhecida.
(Escolinha Yo Mussi, Murrupula, Nampula)


Sim, eu sei q?ue estou sempre a dizer o mesmo, mas as escolinhas são uma ideia vencedora contra o insucesso escolar e a iliteracia em Moçambique, sobretudo nas comunidades em que a língua predominante não é a oficial. Choca-me que as crianças desfavorecidas não tenham acesso a livros em casa e que comecem do zero absoluto no que toca a aprender a ler, mantendo o ciclo de pobreza. Se as nossas crianças, que nascem rodeadas de letras e números e têm livros desde os seis meses às vezes têm dificuldade em aprender, como poderemos mandar estas para a escola só aos seis ou sete anos, sem ideia nenhuma do que lá vão fazer e sem saber falar a língua em que vão aprender?
26
Ago11

[inspiração para uma despedida] decisões difíceis...

beijo de mulata
"Sempre tive uma tendência terrível para adiar coisas inadiáveis. Sempre que há um prazo para cumprir eu sou aquela que entrega as coisas já a pisar o limite. Tenho tendência a adiar, deixar para depois que hoje não apetece. Não me orgulho mas é verdade. Sou assim com as minhas relações (sentido lato) também, felizmente não tanto, felizmente não chego ao limite. Dou por mim a ignorar sinais de "abuso", dou por mim descontente mas a agarrar-me a migalhas como se disso pudesse depender a minha subsistência, dou por mim a ser ignorada e dou pelas minha energias a baterem no casco. E tolero durante algum tempo, tempo esse em que vou emitindo avisos. Deixo porque gosto, porque tenho carinho, porque são amizades longas e com muito tempo de história, porque não fazem por mal, porque dizer não dá muito trabalho, porque tenho alguma capacidade de sacrifício, porque o céu é azul e porque hoje estão 27ºC. Assisto a uma morte lenta enquanto agonizo até ao dia em que me lembro que sou a favor da eutanásia. Eu acredito que numa situação irremediável, há vários fins possíveis. Quanto mais o protelarmos, pior será a versão. Não sei o máximo que valho, mas sei o mínimo pelo qual mereço ser reconhecida. Com alguém que me veja abaixo disso, é impossível relacionar-me."
Por Nervos em Frangalhos

Este texto não podia descrever melhor aquilo que sinto... Está decidido. Vou trocar de frigorífico!
24
Ago11

[and now, for something completely different...] irritações domésticas

beijo de mulata
O meu frigorífico anda a pisar o risco. Anda de uma frigidez agressiva, capaz até de congelar uma alface no tabuleiro dos frescos! Ontem foi uma meloa inteira para o lixo, queimadinha, queimadinha que até fazia aflição... Hoje pu-lo de castigo na varanda para lhe dar uma coça nos entrefolhos, a ver se aprende. E não me venham dizer que ele é capaz de gostar e de se habituar a coças daquelas, que eu quando quero não sou nada meiga... Ele que não se arme ao pingarelho comigo, que eu sou muito bem capaz de viver sem ele. E para colar post-its qualquer parede serve. Em último caso troco-o por outro! Manias de prima donna, é o que ele tem. Ah, mas ele que não se atreva a boicotar a minha galinha à zambeziana de amanhã, que lhe canto um sermão que nunca mais se arma em Polo Norte!

Pronto. Era só isto. Já me sinto mais aliviada. A emissão segue assim que conseguir resolver a questão do molho de bróculos congelado (grande metáfora para algumas vidas!).
19
Ago11

[inspiração para uma despedida] uma última vez

beijo de mulata
Meu amor, lá onde estiveres, seja onde for, por favor não cresças! Não cresças sem mim! Deixa-me chegar a tempo quando for a minha vez… Não te custa nada continuar a gostar de legos e das canções dos anúncios da televisão, e de carrinhos e de aviões.
Se eu tivesse sabido que aquela era a última noite que te ia ter nos meus braços, que no dia seguinte te levariam de mim sem me avisarem, como se eu não fosse a tua mãe e não tivesse de ser tida ou achada no processo, se eu soubesse que depois não chegaria a Moçambique a tempo de te ver uma vez mais… Se eu soubesse, meu amor…

Se eu soubesse que aquela noite ia ser a última, tinha-te deixado chapinhar um pouco mais no banho e não me teria importado que os outros meninos da enfermaria esperassem uns minutos mais. Eles não gostavam tanto do banho como tu. Não ficavam fascinados com uma banheira cheia de água morna e bolhinhas de sais de banho perfumadas, e óleos que deixavam a pele macia. Eles não sabiam que lá onde nasceste a água não vem das torneiras da casa de banho e que a água quente é um luxo que ninguém tem. Os outros meninos não ligavam aos brinquedos no banho. Tu conseguias tirar som e ritmo de qualquer brinquedo que caísse na água e dançar sob qualquer pretexto. Repetias qualquer frase minha ao acaso, fazias dela um refrão e dançavas ao som daquela música improvável, no prazer de gozar comigo, de ver chegar a minha paciência ao limite e de me fazer rir ao mesmo tempo: “Deixa-me só pôr-te o champô. Deixa-me só pôr-te o champô. Deixa-me só pôr-te o champô.”

Tu tinhas os teus tempos, deixavas-te lavar, mas só de vez em quando. Tinhas de fazer pausas para dançar e continuar aquele jogo comigo. No hospital nunca soube respeitar esses tempos porque me sentia pressionada pelos outros doentes. Só lá em casa brincámos a sério, lembras-te? Mas se eu soubesse que era a nossa última noite não te tinha apressado. Até te tinha deixado comer os morangos e os chocolates que me tinhas pedido ali mesmo. Há lá coisa melhor do que um banho de imersão com chocolate e morangos?

Se eu soubesse que era a última noite não te tinha posto na cama, tinha-te deixado adormecer nos meus braços, tinha-te deixado lutar contra o sono o tempo que quisesses. Às vezes, à noite, partias-me o coração porque estavas sempre a abrir os olhos para ver se eu ainda estava ali contigo, se não me ia embora. Estavas sempre de vigia. Tivesse eu sabido e não te tinha dito para fazer silêncio porque os outros meninos do quarto já dormiam e os outros pais precisavam de descansar. Não me tinha importado com o exame de Cirurgia III na semana seguinte e teria passado a noite contigo ao colo a olhar para ti, a sentir-te respirar, como na primeira noite em que te vi… Não te lembras, eu sei. Ainda bem que não te lembras. Quase me morreste nessa noite…

Se eu ao menos suspeitasse, meu amor… Tinha telefonado à enfermeira Susana, aquela que tu adoravas e brincava contigo e te fazia rir como eu nunca consegui. Ela também teria ficado contente de te ver uma vez mais… A Susana deixava-te correr e brincar à vontade, sem ir atrás de ti como eu, sempre com medo que essa perna marota que tinha deixado de se mexer te traísse, e caísses e te magoasses. Mas claro, quando estavas com ela defendias-te mais, andavas com cuidado. Assim que eu chegava afoitavas-te como se o chão não existisse, seguro de que te agarrava em voo, seguro de que não te deixaria cair, mesmo que tivesse de parecer uma barata tonta a correr atrás de ti. E depois gozavas comigo porque mais uma vez tinhas visto que eu estava garantida. E estava, meu amor. Mas comigo eras tão esquivo… Sempre a fazer birras e exigências, como que a ver se eu queria mesmo estar ali contigo, se não te ia deixar, se gostava mesmo de ti. Mas sabias que sim. Eu, aliás, não sei ser de outra maneira. Só sei ser incondicional. Mas isso terias compreendido muitos anos mais tarde, não naquela altura… Com os outros eras o menino mais doce e mais tranquilo da enfermaria. Mas eu sempre compreendi isso, sempre percebi que se agias assim era porque dos outros não te importava saber se gostavam mesmo de ti. 

Se soubesse que era a última vez, tinha-te deixado comer as gomas que a mãe do Bernardo te trouxe naquela noite. Ela adorava ver-te comer! Aliás, todos os outros pais ficavam magnetizados com o prazer com que comias, ainda para mais porque os meninos deles estavam doentes e sem apetite nenhum… E o Bernardo já não conseguia comer desde que tinha tido o traumatismo craniano. Alimentava-se por uma sonda. Lembras-te do dia em que entraste no quarto dele e me perguntaste o que era aquele tubo que ele tinha no nariz? Expliquei-te o melhor que soube, mas olhaste depois a mãe dele com estranheza. Como é que ela, que te dava tantos chocolates a ti, não os dava ao filho dela? Será que não gostava dele? Que espécie de mãe seria aquela? Não sei se te consegui fazer entender que era precisamente por isso que ela adorava ver-te comer as guloseimas que te dava. E até sabia que tinhas passado fome em pequeno, daí o teu fascínio por comida. Mas nessa noite já tinhas lavado os dentes. E sabe Deus o que eu penava todas as noites e que histórias tinha de inventar para te convencer a lavá-los…

Se eu soubesse, meu querido, não me tinha demorado no jantar a falar com a mãe do Diogo, que estava destroçada porque o filho tinha a mesma doença que tu. Procurava conforto em mim porque me achava forte e sabia que eu não era tua mãe biológica. Aliás, saltava à vista que não podias ser meu filho. Mas eras. Sempre foste, desde o primeiro dia, o meu menino do coração. Nunca me achei no direito de chorar à tua frente ou à frente de quem quer que fosse, mesmo quando me lembrava que estavas doente. De qualquer modo tu não me davas vontade de chorar, fazias-me esquecer a doença com o teu sorriso e acreditar que esse sorriso que me derretia era uma conquista minha. Que tinha sido eu a conseguir limpar a tristeza do teu olhar.

E quase acreditava genuinamente que amanhã não viria. “Amanhã não existe!”, repetia para mim mesma de todas as vezes que as angústias me assaltavam. Tu só me fazias rir com as tuas brincadeiras e com as danças africanas que gostavas de imitar. Se tivesses crescido tinhas sido um actor talentoso, tinhas continuado a fazer sorrir às gargalhadas os pais mais tristes do mundo.

Perdoa-me, meu amor, mas eu também não sabia… Naquela noite tinha-te por garantido e estava no meu papel de mãe. Se soubesse, ter-te-ia explicado para onde ias. Eu sei que querias voltar para a tua casa em Moçambique, apesar de os teus pais não estarem lá. Era naquela casa que estava o teu irmão e todas as tuas referências. Mas tenho a certeza de que tiveste medo quando te puseram no avião. Não sabias para onde ias. Como poderias acreditar que ias para casa se da última vez que te tinham posto num avião sozinho te levaram para aquele hospital, para um quarto de isolamento? O que foi que pensaste de mim? Eu sei que os cinco anos são a idade da angústia e da culpabilidade. Claro que ninguém te explicou que eu não desapareci da tua vida por te teres portado mal. Claro que ninguém te explicou que não te abandonei e que sofri horrores quando te foste embora. Ninguém te disse que não estava a mentir quando te respondi nessa manhã, depois de uma noite mal dormida naquelas cadeiras horríveis, que sim, que voltaria nessa tarde. Que só ia trabalhar para outro hospital, ver outros meninos e já voltava.

Eu voltei, meu amor, juro que voltei. Com mais um livro de animais, daqueles que tu adoravas. Ainda o tenho lá em casa… Tu é que já não estavas. As enfermeiras nessa tarde abanaram a cabeça, perplexas. “Mas não sabia? Nós também não sabíamos… Não sabíamos que ele ia voltar hoje para Moçambique. Ninguém sabia. Até foi sem nota de alta e tudo. Parece que lhe arranjaram lugar num voo muito mais barato e aproveitaram. Vieram buscá-lo logo ao fim da manhã. De qualquer forma já tinha terminado os tratamentos, já não estava cá a fazer muito mais…” Agora compreendes, não compreendes? Por isso peço-te, por favor, não cresças sem mim. Deixa-me um dia, ao menos uma vez, chegar a tempo.
16
Ago11

[outras palavras] o dia a dia de quem trabalha com sida e desnutrição

beijo de mulata



Hospital do Marrere...
(Marrere, Nampula)

Tenho uma amiga que trabalha no Marrere, a 30 km de Nampula, num projecto iniciado por ela no combate à SIDA e à desnutrição naquela zona. Por vezes escreve-me a contar como vão correndo as coisas... Vakhani-vakhani, sempre "pouco a pouco", como se diz por lá... Este foi o último mail dela.

No inicio da manhã de trabalho de sexta feira uma auxiliar do serviço de Pediatria aparece no nosso serviço justificando-se:

- Aquela mãe me fugiu!

A auxiliar tinha sido encarregada de acompanhar duas mães referenciadas para o nosso serviço, mas no trajecto entre o internamento e o pavilhão das consultas uma delas escapuliu-se com a criança.

Certamente, esta deveria ter desviado a sua atenção do trabalho que lhe tinham incumbido, na conversa com alguma colega ou conhecida, proporcionando a oportunidade à mãe de abandonar o hospital. Regressará daqui a algum tempo, já numa situação bastante mais grave, ou irá em busca do curandeiro para curar a doença que lhe diagnosticaram no hospital.

A Lucrécia é a segunda criança referenciada do internamento. Trata-se de uma menina de 8 meses, desnutrida e que necessitou de tratamento hospitalar. A mãe fez algumas consultas durante a gravidez. Numa delas perdeu-se a oportunidade de fazer o teste para o VIH. Este simples meio de diagnóstico não estava disponível naquele dia. Quero acreditar, que lhe recomendaram que voltasse no mês seguinte, o que não aconteceu e a gravidez prosseguiu sem qualquer vigilância. O parto foi em casa, como ainda é muito frequente nesta terra, e assim se passaram oito meses sem qualquer vigilância. Muitas vezes, mesmo que a criança manifeste alguns sinais ou sintomas de doença, é normal as mães ”sentarem“ em casa, à espera que passe.

Acontece com muita frequência esta falha de abastecimento de meios materiais necessários para o normal funcionamento dos serviços, o que resulta em prejuízo para os doentes, mas aqui essa situação é encarada com absoluta normalidade!

Nesta manhã de trabalho que partilho convosco faltam os cartões de saúde da criança (aliás já faltam há mais de um mês). É um documento muito bem concebido, onde é possível registar toda a informação que diz respeito à evolução do peso, desenvolvimento, vacinação, intercorrências, registar ainda informação relativa à profilaxia da transmissão do VIH no caso das crianças expostas ao vírus, hospitalizações e tratamento, alimentação. Enfim é um verdadeiro BI da criança e indispensável para o nosso trabalho. Não há nada que substitua este documento. Então as colegas vão fazendo os registos em diversos papéis sem qualquer ordem ou sequência... Enfim um caos!
Outra situação, diz respeito a um produto farmacêutico muito eficiente no combate à desnutrição grave e que deve ser fornecido às crianças que são vítimas desta situação intolerável. Hoje das 28 crianças previstas, 5 necessitavam deste medicamento

- Não há - diz a colega -, as mães podem voltar na segunda-feira.
Isto sem se preocupar com as consequências da interrupção do tratamento. O dia estipulado para requisitar os produtos à farmácia é segunda-feira e portanto não tem nada que saber: os meninos voltam na segunda-feira!

Seriam obrigados a voltar se eu não tivesse forçado a situação, contactado com a Directora do Hospital, quase obrigado a fazer o pedido para a farmácia, mais uma série de diligências para que as crianças recebessem o medicamento. Há uma atitude permanente de adiar a resolução dos problemas, de preguiça no trabalho, de desinteresse, de falta de respeito para com as crianças, de ausência de planeamento o que complica muito o nosso dia a dia. Temos de fazer um enorme esforço para conseguir realizar bem o nosso trabalho

Para mim, era inaceitável que havendo o produto disponível no armazém, a criança ficasse privada dele durante quatro dias. Nada os incomoda! O problema está sempre do lado de quem sofre, nunca do lado dos profissionais. Eu já estava muito incomodada com a situação daquelas duas meninas seropositivas. A culpa é das mães – uma porque não voltou ao posto de Saúde, a outra porque fugiu do problema. A responsabilidade nunca é dos profissionais que não fizeram o bem o seu trabalho. Conseguem imaginar uma pessoa doente, dirigir-se ao hospital em busca de alívio para a sua doença, fazer consulta e depois não conseguir receber um único medicamento prescrito? Pois, esta é a realidade nua e crua. Neste momento, o próprio Ministério da Saúde já declarou que irá haver ruptura no abastecimento das farmácias hospitalares em antiretrovirais e antipalúdicos. Isto é mesmo de arrasar!

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