Tenho vários amigos e conhecidos que vivem felizes sem uma televisão em casa. Um deles é pai de seis filhos. Não encontro qualquer relação entre o
baby boom e a ausência de televisor, embora estes dois fenómenos sejam, na
vox populi, causa e efeito, o primeiro consequência natural do segundo. Dois dos filhos deste meu amigo são agora adolescentes e, no entanto, ambos são aparentemente normais, embora me pareçam ligeiramente mais vidrados que o habitual para a faixa etária quando dão de caras com um ecrã... Eu própria tenho para mim que poderia viver feliz se não tivesse uma televisão em casa, se se desse o (a)caso de não a ter. [E mais uma vez o beijo-de-mulata presta homenagem aos soldados foliões que imortalizaram o Marquês de la Palice.] Por acaso na Catalunha até vejo de vez em quando o "Sexo e a Cidade" dobrado em castelhano e acho-o absolutamente impagável! Nunca pagaria para ver tal coisa, se bem me entendem...
Por vezes o assunto vem à baila. Uns referem-se ao facto como mera casualidade: "Ainda não nos deu para aí." ou "Nunca nos decidimos a comprar uma, não sei porquê.", outros justificando-o com ligeireza: "Não temos necessidade, vemos tudo o que precisamos na internet e não gostamos da programação." e outros ainda com um discurso sobre "opção de estilo de vida" e os malefícios da televisão sobre a vida familiar.
Recentemente, um destes meus conhecidos, representante convicto desta última posição, viu-se obrigado a comprar uma televisão por pressão da empregada interna e babá dos meninos, uma brasileira de nascimento e de coração, e fervorosa adepta do momento
empty box de todas as noites. Aquela mulher era uma força da natureza, fonte de boa disposição e de escape para as energias das crianças, responsável pelo seu sotaque morno e cantado e pelo bambolear leve das ancas da mais nova quando dançava "os patinhos". Um dia a babá dos seus filhos ameaçou despedir-se se não tivesse uma televisão para ver a novela das nove. Acabou por ceder. Afinal de contas a empregada podia muito bem ver a novela das nove sem que isso interferisse com a dinâmica familiar e poderiam manter o seu estilo de vida saudável com uma televisão no quarto da empregada.
Mas mal esse bicho do demo entrou lá em casa, a vida transformou-se. Dava por um sossego invulgar às cinco da tarde, que lhe permitia ler o jornal e preparar as sessões de formação com muito mais calma e o dobro da velocidade, mas quando ia ver o que se passava, os meninos estavam sentados na cama da babá a ver o Ruca. Ficava com os cabelos em pé quando percebia que às oito e meia a mulher tinha desaparecido no quarto da empregada adentro para ver o telejornal. E o pior de tudo é que dava por si com saudades das comédias e séries policiais da sua adolescência e a imaginar como seriam sofisticadas e empolgantes as séries americanas actuais de que falavam às vezes os colegas de trabalho.
A cama da babá rapidamente passou a sofá de toda a família e o quarto a centro de reunião e convívio familiar. Até que a senhora, dona de uma personalidade invulgar, deu novo murro na mesa. Então invadia-se assim o quarto de uma pessoa? Já não se podia ver a novela das nove descansada sem a sensação de que os donos da casa preferiam estar a ver as notícias? Que espécie de
empty box era aquela?! Hum? "Assim não
podjia sê não!" E, pronto, não havia mais nada a fazer se não rever todas as suas convicções acerca do mundo em geral e da família em particular e perguntar à empregada se não se importava que a televisão, que afinal fazia muita falta, passasse para a sala porque eles agora queriam jantar todos a ver a novela das nove, como as famílias disfuncionais!
Adenda: Este post não contém uma moral. Nem uma opinião pessoal. E também não tem um motivo. Poderia dizer-se que "encerra em si a razão da sua própria existência", tal como um jantar de amigos, mas nem mesmo isso me apetece que se diga. É uma história apenas. Verídica, toda ela, pois claro. Tirando aquela parte do Marquês de la Palice, mas isso não é culpa minha...