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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

05
Jun11

[o meu hospital na zambézia] instantes

beijo de mulata


O Hospital do Gilé, tal como o vi pela primeira vez...
(Gilé, Zambézia)

Fui ao Gilé pela primeira vez em 2004, a acompanhar a Irmã Lurdes, que ia deixar Iapala para fundar uma missão naquele mais que fim do mundo. Como era possível alguém deixar Iapala?, pensava eu na altura. Ainda hoje não sei como foi que ela teve coragem de deixar Iapala, a montanha mágica de Nampula, para ir para um desterro como aquele. Não havia água canalizada, nem luz eléctrica, nem bombas de gasolina. Não havia pão para o pequeno-almoço nem ninguém que o pudesse fazer. Quase não havia comércio. A feira era uma vez por mês. Se quiséssemos comprar carne ou legumes, ou outros géneros alimentares era quase impossível. E então se precisássemos de um biberão para uma criança desnutrida ou até de uma simples capulana era melhor nem pensar. Só se se "apanhasse muita sorte"!

A cidade ficava a 8 horas de viagem durante a estação seca e não se podia fazer o caminho durante as chuvas porque não havia combustível e as estradas ficavam quase intransitáveis... As Irmãs não iam ter sequer uma casa onde viver, iam acotovelar-se num anexo da casa dos padres... Como era possível alguém acreditar que ia poder fazer alguma coisa a partir de menos que zero?

Mas a Irmã Lurdes era inamovível. Ia para  Gilé. Se era para lá que Deus a mandava, era para lá que iria! E eu também fui nesse dia, para ver o que a esperava... Para pelo menos poder rezar por ela...

Fui ao hospital nesse dia. Sempre gostei de fazer turismo hospitalar, mas dessa vez fui porque o director da escola onde as Irmãs iriam trabalhar me pediu para lá ir ver o filho que estava internado. O senhor mal conseguia falar de tão emocionado e preocupado que estava com a doença da sua "primeira sorte". Achei o hospital absolutamente encantador, com as suas enfermariazinhas pequeninas de dois ou três doentes que pareciam casinhas de bonecas, paupérrimo, com uma pobreza de recursos e de conhecimentos absolutamente avassaladora.

Entrei na enfermaria onde estava o menino e deparei-me com uma criança de dois anos, prostrada, a arder em febre, no colo de sua mãe lindíssima, que lentamente o massajava com água fria para o arrefecer enquanto o olhava nos olhos. Uma imagem tranquila, quase de uma pintura de outros tempos... Foi nesse momento que tive o primeiro pressentimento de que afinal talvez pudesse um dia trabalhar ali. A Irmã Lurdes já o tinha tido noutro local tempos antes. Falou-me depois do sofrimento silencioso das pessoas, da esperança e da resignação do povo que tinha visto na primeira manhã da sua visita ao Gilé... São momentos que mudam as nossas vidas.

Observei o menino, que tinha uma gastroenterite bacteriana, nada mais. Precisava apenas de um soro e de um antibiótico. Um tratamento absolutamente básico mas que não estava a ser feito. O pai tinha toda a razão em temer pela vida do filho... Fui ter com os enfermeiros, que alegremente descansavam, conversando debaixo do cajueiro. Sentei-me com eles a conversar, apresentei-me, pedi-lhes delicadamente para colocarem um soro ao menino e perguntei-lhes se tinham o antibiótico indicado para aquela situação. Não o conheciam, mas disseram que sim. À cautela escrevi-o num papel que dei ao pai, para ele poder depois confirmar se lhe estava a ser feita a medicação.

Anos depois, numa outra visita ao Gilé, o director da escola soube que eu estava novamente na vila e levou-me o filho para me mostrar como estava lindo e enorme!

- Sabe, Doutora, eles não tinham aquele medicamento. Eu tive de ir a Quelimane, a 400 km daqui para ir comprar o antibiótico para o meu filho e só depois é que ele começou a melhorar...

Na mão trazia-me um embrulho minúsculo em papel de jornal. Nem o abri à frente dele, embevecida que estava por o menino não ter medo de mim e até me querer saltar para o colo a sorrir (é tão raro não estranharem uma mulher sem cor de pessoa...). Só quando saiu me lembrei do embrulho. Era uma pequena pedra vermelha, tosca e com uma forma bruta. Um rubi das minas que ficam perto...
04
Jun11

[o meu hospital na zambézia] as leis de murphy aplicadas à medicina

beijo de mulata
(continuando...)

Regressemos então ao meu hospital na Zambézia, que deixámos lá, em suspended animation, o menino de sua mãe com uma insuficiência cardíaca que se agravou nas últimas horas.

[Primeira lei de Murphy: se o aparelho não funciona, teste a tomada.]
- Já lhe deram a medicação? - pergunto à mãe.
- Sim, já tomou. Agora mesmo.

[Segunda lei de Murphy: se mais do que uma coisa puder correr mal, correrão todas mal ao mesmo tempo. Hummm... De certeza que apanhou mais qualquer coisa...]
- E hoje teve febre?
- Não.
- Tosse?
- Não.
- Diarreia ou dor de barriga?
- Não teve nada na barriga.

[Terceira lei de Murphy: se duas coisas puderem potencialmente correr mal e você conseguiu evitar ambas, então ocorrerá invariavelmente uma terceira, muito mais complexa... Bem, tenho de ir ver o que se passa.]

- Até já, mamã, que vou ali perguntar uma coisa... [Vou ter com o enfermeiro.] Sr. Enfermeiro, o menino B. já tomou a medicação?
- Sim, tomou agora mesmo.
- Mas ele está muito pior... Se calhar era melhor tomar uma dose suplementar do medicamento A...
- O medicamento A não tem...
- Não tem?! Como assim?
- Não tem. Não tem o medicamento A no armário dos medicamento...
- Mas disse-me que ele tomou a medicação!
- Sim, tomou o que havia. O que não havia não tomou.
- Então o que é que ele tomou?
- Tomou multivitamina e paracetamol.
- Mas esta manhã, quando internei o menino perguntei se tinha e disse-me que sim.
- Sim, tem.
- Então? [Ó valha-me Santa Rita de Cássia!]
- Mas hoje não tem...

(continua...)
01
Jun11

[benvindos ao estado de emergência] os pepinos

beijo de mulata
Bem*, e já que vieram do mato de propósito para me ouvirem falar das baboseiras dos nomes primos ali no post abaixo, não vamos perder a viagem, pois não?

Ora depois de uma semana inteira de trocadilhos com pepinos e "colibacilos" [o que eu gosto desta palavra!], depois de vários dias na Europa Central numa de peel it, boil it or forget it, como se tivéssemos ido à ópera num campo de refugiados do Ruanda, depois de num hotel vienense os pepinos e tomates do pequeno-almoço ostentarem, sem que eu fizesse a mais pálida ideia da razão, a localização geográfica das suas hortas de origem, vem então a Ministra da Agricultura de nuestros hermanos assegurar-nos de que "os pepinos estão bem". Grande senhora! Podemos hoje agradecer-lhe mais uma tirada fantástica a ficar na História Universal dos Vegetais. Para mim acabou de suplantar o clássico "Nothing personal, Damascus!" de Douglas Adams...

Graças a Deus e a São Francisco de Assis, padroeiro dos legumes! Cheguei mesmo a temer o pior para os pepinos. Agora resta-nos voltar ao peel it, boil it or forget it e, pelo sim pelo não, ferver a água como no mato enquanto não se descobre a origem da epidemia. E, já que estamos numa de mato... 'bora voltar para a Zambézia?

* Este blog continua um fervoroso adepto da vírgula de Oxford. Cá por coisas.
01
Jun11

[nomes que dizem tudo #19] interrompemos a emissão a partir do mato para dizer...

beijo de mulata
...minha querida Pólo Norte, eu sei porque tu já o revelaste em público... O teu segundo nome é um nome primo. [E o que é um nome primo?, perguntam os meus queridos amigos, que gentilmente se dispuseram a interromper a sua viagem exótica pelo meu hospital no meio do mato, na Alta Zambézia, para vir escutar mais uma das minhas teorias sobre nomes improváveis... Ora, é fácil, um nome primo é um nome que só combina de forma minimamente razoável com Maria ou com Ana, sendo nome de menina, ou com José, sendo nome de rapaz.]

E portanto, Pólo Norte, foi em ti que pensei hoje na minha consulta. Mesmo que o teu verdadeiro nome seja qualquer-coisa-de-absolutamente-tenebroso-e-que-combina-de-forma-assustadora-com-Ruth, a partir de hoje podes ficar em paz, porque eu já vi uma menina chamada.... [estão preparados?] Odete Soraia!

Pronto. Era só isto. A emissão segue novamente para o mato dentro de momentos...

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