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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

30
Mai11

[o meu hospital na zambézia] está melhor? ainda...

beijo de mulata
(continuando...)

Esta mamã, como qualquer mulher macua nascida e criada no mato, acredita apenas no destino e já percebeu que a hora do filho está perto. Não interfere. Só está ali porque a família já o deu como perdido e portanto foram ao hospital tentar ainda a sorte, mas sem grande convicção... Como sei que foi assim? Já não preciso de perguntar. Ninguém vai ao hospital sem passar antes de mais pelo curandeiro. Na cultura macua, a doença só pode resultar de um feitiço que alguém lançou à criança por inveja da família, ou então da zanga de um antepassado porque alguém quebrou um qualquer tabu - ou não guardou o devido respeito a uma tradição. Vírus? Micróbios? Uma pneumonia? Que sentido podem fazer à luz destes conceitos? Por mais que me esforce nunca lhe vou conseguir explicar que o que se passa com o seu menino é uma alteração na estrutura do coração... Só posso ir prometendo que vamos cuidar bem dele e ajudar a família no que pudermos...

Foi por não perceber os mecanismos de doença na cultura macua que demorei tempos infindos a perceber por que razão os pais respondiam sempre que os meninos não estavam melhores, a não ser que já estivessem completamente bem e prontos para ter alta.

- Mas ele parece melhor, papá...
- Não… ainda está doente.
- Mas ontem teve febre quantas vezes?
- Três vezes.
- E hoje?
- Hoje… ainda. [Ou seja, hoje ainda não teve febre.]

Os meninos estavam claramente melhores e os pais não percebiam isso… Não sei quanto tempo demorei para me dar conta de que eles genuinamente não reconheciam o estado dos filhos. Até lá imaginava apenas que os pais tinham tanto medo de que os filhos morressem que até tinham receio de dizer que estavam melhores. Eu pensava que era intuitivo, que qualquer pessoa conseguiria ver se outra estava melhor, quanto mais uma mãe: se já estavam mais corados, se já se alimentavam e brincavam um pouco, é óbvio que estavam melhores…

Mas bastava ter pensado um bocadinho. Eu é que não estava preparada para me afastar tanto do meu próprio conceito de doença. Se o menino foi vítima de um feitiço ou de um castigo dos antepassados, então só podem existir dois estados de saúde possíveis: ou se está bem, ou se está doente. Não faz sentido existir um meio-termo. [Daí a clássica resposta: “Não, não está melhor. Ainda está doente…”] Nem existe, aliás, qualquer expressão em macua que signifique "estar a melhorar". Existe a expressão "vakhani-vakhani", que quer dizer "pouco a pouco", mas não se refere a uma alteração no estado geral, quer apenas dizer que não se está muito bem nem muito mal.

O problema é que, tal como não reconheciam as melhoras, também não se davam conta de qualquer agravamento. Entendiam o agravamento como fazendo parte da evolução natural da doença. Nem sequer lhes ocorria avisar quem de direito ou pedir ajuda. “Somos todos impotentes na doença” diz um provérbio macua. Por isso é preciso estar sempre em cima do acontecimento ou as coisas acontecem nas nossas barbas!

(continua...)
29
Mai11

[o meu hospital na zambézia] ah, mwanaka!

beijo de mulata
(continuando...)

Aproximo-me da cama de uma criança com insuficiência cardíaca e noto que está pior. A dificuldade respiratória acentuou-se. A mãe, como sempre, não arreda pé do seu lado, mas está apenas a assistir a tudo, impotente.

Antes desconcertava-me o olhar vago e a passividade (ou impassividade, não sabia dizer) com que presenciavam a doença até ao desenlace final. Arrepiava-me que nunca pedissem ajuda, que nunca me avisassem de que a criança estava pior, que ficassem apenas a assistir a tudo sem sequer tentar interferir. De tal forma isto era sistemático que uma tarde, acabada de chegar de uma saída para o mato, entrei na enfermaria e perguntei em voz alta em macua para todas as mães: "Está tudo bem com os meninos?" Ninguém respondera. Descansada porque, pelo menos naquele momento, não parecia haver nenhuma emergência fui buscar os processos para começar a ver os meninos. Nem dois minutos depois ouvi um grito: "Ah, mwanaka!" Uma criança tinha acabado de morrer mesmo nas minhas costas...

Quase me enfureci nessa altura. Era de desesperar! Como era possível?! Eu tinha estado ali. Eu tinha-me oferecido para ajudar. Qualquer mãe teria pedido ajuda... Será que lhe era indiferente a morte de um filho? Mas não. Não era assim tão simples... Nunca ninguém disse que era simples ser médico em África... E nunca ninguém disse que era simples resolver os problemas de saúde que assolam todo o continente... Se fosse simples a situação talvez não fosse tão catastrófica.

Depois, olhei bem mais no fundo dos olhos das mães das crianças em agonia e, para lá da passividade, do olhar que parecia imperturbável, para lá do eterno sorriso, vi um desespero, uma amargura, um quase abandono. Claro que não podia ser indiferença!

Esta mamã do menino com insuficiência cardíaca eu já conheço... De manhã perguntei-lhe:
- Quantos filhos tem, mamã?
- Quatro...
- E quantos estão vivos?
- Este só...

Que coração tão maltratado... Os olhares escurecem de vez em quando, mas são quase sempre impenetráveis...
 
(continua...)
27
Mai11

[welcome to mozambique] esqueceu de lembrar...

beijo de mulata
(continuando...)

- O Sr. prescreveu o antibiótico X ao menino que acabou de ser internado.
- Sim, Doutora.
- Mas tem esse antibiótico aqui?
[Sem pestanejar...] - Não, o antibiótico X... infelizmente não temos há mais de duas semanas.
- Ah, mas então porque prescreveu o antibiótico X se não existe?
- É o antibiótico indicado.
[Oh, valha-me Santa Rita de Cássia, que isto não pode estar a acontecer...] - Mas o antibiótico Y também serve para a mesma doença.
[Pensativo...] - O antibiótico Y temos!
[Mas será que não ligou mesmo nada ao que estava a fazer? Não podia estar preocupado com a criança quando a internou com uma doença grave para fazer um tratamento que sabia que não existia... Será falta de inteligência? Desprezo? Puro desinteresse?] - Sim, eu sei que temos o antibiótico Y. É por isso que o doente fulano e o doente sicrano na enfermaria estão medicados com ele e não com o medicamento X.

E não, já não me iludia. Já não acreditava que poderia valer a pena enfurecer-me por dentro mas manter uma calma aparente para levar o técnico a prescrever o medicamento certo. Da vez seguinte era necessário ir ver novamente que medicamento tinha sido prescrito e chamar-lhe a atenção outra vez. Sempre com a mesma cara. Sempre com o mesmo sorriso. Dez minutos depois, se fosse necessário.

- Esqueceu de lembrar...
- Ah, mas é melhor corrigir e prescrever o medicamento Y, porque o medicamento X não tem há mais de duas semanas...

De nada me valeria gritar ou zangar-me, não ia obter mais colaboração por isso. Pelo contrário. A resistência passiva é o apanágio de quase todo o povo. Passariam a dizer que "Sim, sim, hei-de fazer.", sem qualquer intenção de fazer o que quer que fosse. É preciso respirar fundo e ter calma. Não perder o optimismo. O meu objectivo é ganhar a guerra, não posso desorientar-me em pequenas batalhas... O que é preciso é que os meninos melhorem, é essa a única coisa importante. Se para isso for preciso ir quatro vezes por dia à cama de cada menino verificar se lhe foi dada a medicação, então irei quatro vezes por dia à cama de cada menino verificar se lhe foi dada a medicação. Se me zangar isso só vai funcionar da primeira vez. Para a próxima, na melhor das hipóteses, começam a evitar-me. E ainda assim, sabe Deus como me posso tornar incómoda...

(continua...)
27
Mai11

[welcome to mozambique!] se tem cal... não tem balde...

beijo de mulata
Bem, é sempre a mesma coisa... Se tem cal, não tem balde. Se tem balde, não tem pincel. Se tem reagentes no laboratório, faltou a energia de Cahora Bassa. Se tem ambulância, não tem combustível. Se tem combustível, que finalmente chegou esta semana, o motorista ficou de baixa com malária. Se tem combustível e ambulância e o motorista já está bem de saúde, a ponte caiu e não vai ser possível chegar ao outro lado...

Custa viver com tanta lei de Murphy levada ao extremo de uma roleta russa. Mas o pior de tudo não são as leis de Murphy. As leis de Murphy são as leis que regem o universo e só temos de repetir para nós próprios que existe certamente uma saída e ela há-de vir a qualquer momento, o melhor é olhar para cima, respirar fundo e improvisar uma solução, que o universo e esse tal de Murphy, por muito que saibam de leis, nada podem contra uma loira determinada em passar um rio apesar do desabamento da ponte e transferir o doente para um hospital com bloco operatório.

O pior de tudo aqui no mato, meus amigos, é o sentimento de que, mesmo com os poucos recursos que têm à disposição, era tão fácil fazer cem vezes melhor no hospital... Bastava um pouco mais de interesse e um pouco menos de desleixo... Um pouco menos de desprezo por quem tem menos sorte. Bastava minimamente colocar-se na pele do outro. Ou ter brio por um trabalho bem feito...

É este o sentimento que mais custa ultrapassar. Tinha de repetir para mim própria mil vezes por dia: "São estas as pessoas que tenho, é com elas que tenho de conseguir trabalhar." E obrigava-me a sorrir e tratar com respeito as pessoas a quem só me apetecera apertar o pescoço momentos antes porque não tinham feito um gesto básico e simples e que essa falha quase custara a vida de uma criança se eu não tivesse ido atrás...

(continua...)
24
Mai11

[outras palavas] hoje não há-de ser possível...

beijo de mulata
Texto fantástico e incrivelmente realista do André da Tertúlia Africana, de que fica o link, com a devida vénia. Como gostaria de ter sido eu a escrever este texto, que dedico ao meu querido amigo que tem nome de filósofo (não, não é o Sócrates!), meu guru espiritual do "modo África", que me ensinou que a vida é simples e que em África nada é revoltante: é exótico! Para ele um abraço.

"Lembro-me que, quando ia com frequência levar o carro ao mecânico, a acção revelava-se penosa. Ainda eu não tinha acabado a frase de diagnóstico da avaria e já o mecânico abanava a cabeça a dizer não! Quando eu terminava, apressado pelo stress daquela reacção, a resposta vinha então de forma sonora: “pois, mas isso não há-de ser possível!”. Seguiam-se uma série de silêncios, ideias, contra-propostas e, no final, a avaria reparava-se sempre!! Seja como for, desisti de lá ir, como devem calcular…

Os Moçambicanos têm por hábito dizer que herdaram muitas coisas dos portugueses, mas na maioria das heranças apenas constam defeitos. Não nego que os portugueses têm muito de inércia, preguiça e hábito de reclamar mas os nossos irmãos Moçambicanos aprimoraram a técnica.

Há quem chame de “desporto nacional”… Eu diria mal nacional, não unânime, mas bastante abrangente. É que tantas vezes, mesmo antes de começarmos a frase, sentimos da pessoa uma rugosidade afectuosa (expressão que inventei agora mesmo, mas que espero que a entendam).

Sento-me num restaurante, o empregado aproxima-se, diz a cordial “boa noite” e fica a olhar para mim espantado, como se não estivesse à espera daquele meu gesto de me sentar numa das mesas e viesse incomodar a sua paz. “A ementa, por favor”, digo. Frase que lhe dá um flash de reacção e o faz lembrar-se de que está a trabalhar num restaurante. Volta à realidade, com um espasmo de surpresa (fingindo ser a primeira vez que se esquece da ementa) e lá vai enfim buscar o menu. "Mas que raio o homem vinha aqui fazer sem sequer trazer o menu?", penso eu.

Entro numa loja, onde está um macua a atender. Refiro-me especialmente aos macuas, porque são mestres na expressão facial minimalista. Digo bom dia, eles respondem com um ligeiro levantar de sobrancelha e um soluço de ar que no inicio até me afligia, mas que quer dizer, em linguagem macua: bom dia! Este soluço, um aspirar repentino de ar, é algo que só visto. A pessoa, de repente, tem uma pequena convulsão, parecendo que lhe falta o ar. É angustiante, pois pensamos que vai ter um enfarte ali mesmo. Ficamos boquiabertos, à espera dos próximos sintomas, mas já olha para nós impaciente à espera do pedido. Não sai nenhuma palavra da boca deles. Peço algo e o empregado responde um estranho e agressivo “HÃ?”, como se eu estivesse a pedir costeletas numa loja de ferragens! Não, simplesmente o empregado não estava para ser incomodado e tinha o sistema auditivo em stand-by. Até pode ter o que procuro, mas faz que não percebe. Até pode estar à vista e eu apontar, mas diz que aquilo é outra coisa…e continua a sua tarefa de hibernação.

O “Hoje não há-de ser possível.” é uma frase muito comum que sai da boca das pessoas que atendem. Mas a frase não sai com uma expressão de pena por não conseguirem servir o meu pedido. Sai com um desleixo de quem nem sequer parou para pensar se poderá de facto fazer ou não. Às vezes até acho que com um pouco de troça, aproveitando a relação cliente/provedor, em que o primeiro depende do segundo.

Segunda-feira é o inicio da semana, ainda não está pronto. Quinta-feira é véspera de sexta e amanhã vai ser difícil. Sexta-feira é sexta-feira e agora só na segunda-feira. Restam dois dias, terça e quarta, para servir, satisfazer e cumprir. Mas nesses dias o chefe ausentou, o sistema está em baixo ou, mortiferamente, como um punhal, “não há-de ser possível”!

A ginástica para nada fazer é de louvar, mas o resultado é desastroso, inútil. Se há alguma tarefa para fazer, só amanhã, porque hoje não há-de ser possível. Amanhã esqueceu a caneta e quando lhe empresto a minha azul, só escreve bem com a preta. A cadeira chia e assim não se concentra, troca com outra, mas é baixa, já não dá jeito. A luz está trémula e assim faz doer a vista. Troca-se a lâmpada?, está muito ocupado. Chama-se um técnico?, demora semanas. Falamos em pé para tentar dar seguimento à tarefa, mas toca o telefone e é inadiável. Desaparece 2 horas e quando volta acha que só se ausentou apenas por dois minutos…mas suficientes para apagar da memória o que estávamos a fazer. Explico de novo. Epá, mas isso agora só amanhã…hoje não há-de ser possível!(...)
23
Mai11

[introdução à escorpiologia] da teoria à prática

beijo de mulata
Meus queridos amigos, escrevo para encerrar o assunto dos sapos e dos escorpiões naquele que foi um dos greatest hits desta semana aqui no mato - sobre os encontros imediatos que podem suceder numa casa de banho na savana. Entre outras coisas é um post onde se aprende que os escorpiões não costumam andar aos pares (e não, não é uma metáfora nem uma referência velada aos nativos deste signo). É também um post onde se expõe a razão pela qual eu, mulher púdica e recatada, nunca seria capaz de beijar um sapo numa casa de banho, sobretudo se corresse o risco de ele se transformar em príncipe...  Assim um bocado à mete-nojo histriónica, falo também de um encontro com uma centopeia e de outro com uma cobra cuspideira, mas depois acabo por não me descoser. E não adianta virem aqui numa de "ajoelhou tem que rezar" porque eu tenho uma reputação a manter.

Enfim, tudo isto para dizer dizer que nesse post, como em quase todos os outros aqui no mato, não se aprende muito. Já a Maria Bê, minha correspondente no Arizona, veio aqui para me demonstrar que, em matéria de escorpiologia, se uns jogam no estádio da aldeia, no "solteiros contra casados", outros há que lhe dão forte e feio na primeira divisão. Eu fiquei fascinada (para não dizer arrumada) com uma lição de caça ao escorpião com luz ultravioleta! E para quem quiser aprender mais tem ainda, nos posts mais antigos, uma introdução à escorpiologia e imagens da captura do Marvin, um escorpião que foi posterormente adoptado e vive agora como um príncipe em casa de um amigo (sem que para isso se tenha transformado em sapo - sim, eu sei que isto são circularidades de uma rapariga loira, mas também, assim como assim ninguém vem aqui para estudar lógica argumentativa, pois não?).

E pronto, da próxima vez que for para Moçambique já sei que mais levar na mala...
22
Mai11

[outras palavras] uma improvável viagem de comboio

beijo de mulata
O Nampula-Cuamba Orient Express
(Iapala, Moçambique)

Texto do meu grande amigo Francisco Campos, sj. Viagem magistralmente captada em vídeo já postado mais abaixo. O link, para os leitores mais atarefados.

"Cheguei demasiado depressa. Foi um pulo demasiado rápido". Senti isso logo à chegada a Nampula, zona macua, no Norte de Moçambique. O meu destino era Cuamba, onde vim para dar um retiro aos Leigos para o Desenvolvimento que aqui trabalham e que me têm acolhido tão bem.

Nampula é muito diferente de Maputo. A cultura e a língua são outras, vêm-se muitos muçulmanos trajados com seus tradicionais hábitos e a própria maneira de estar é diferente. Por isso, assim que pude, fui dar uma volta a pé pelo bairro onde me achava alojado para poder estar e sentir, e finalmente poder "chegar" a esta terra onde já me encontrava.

No dia seguinte segui para Cuamba. A maneira mais fácil de fazer estes 350 km é de comboio. Uma viagem muito bonita e, como quase sempre em Moçambique, com os seus desafios tão específicos. Dura apenas 11 horas e em 3ª classe vai-se confortavelmente sentado em bancos de pau.

Às 3.30h da manhã o Pe. Leonel foi levar-me à estação e orientar-me na confusão aparentemente instalada. Há várias bichas consoante a quantidade de carga que se transporta, umas para mulheres e outras para homens. Guardas munidos de vistosos cacetetes ostensivamente abanados no ar vão gritando com as pessoas e mantendo a ordem relativa. Depois de uns minutos da despedida do Pe. Leonel vieram dizer-me que o "Padre foi assaltado e agredido com uma garrafa partida à saída da estação". Ainda lá fui ver o que se passava e se era preciso algum auxílio, mas já tinham ido todos embora. Os três meliantes tinham sido os primeiros a desaparecer com a aproximação rápida da polícia. O Pe. Leonel também já lá não estava e, vim a saber depois, tinha ido para a esquadra e hospital apanhar sete pontos no braço. Acabaram por não lhe roubar nada, e ainda bem que a história não acabou de forma ainda mais trágica.

Finalmente houve a ordem de entrada no comboio. Alguns tentam furar filas, outros arranjar bolsos com carteiras recheadas de gente mais desprevenida, grita-se, corre-se, os guardas entram ainda mais em acção, há encostos, o adro grande fica repleto de gente junto ao portão para a gare.

Ao entrar no comboio encontrei um bom lugar onde me sentei às apalpadelas. Na noite vai-se sentindo a aproximação das pessoas e dos vizinhos de viagem. Adivinham-se vultos e imaginam-se faces, cores, sorrisos... mas de facto não se vê nada. Com rapidez, a carruagem vai enchendo-se de pessoas e bagagens de todos os tipos e por vezes tem-se melhor noção disso quando alguém já habituado a estas andanças acende a sua lanterna. Reparo que o vidro da minha janela está partido e já não existe. Sinto que isso vai marcar definitivamente a viagem, e por ela pode contemplar-se um céu estrelado que profecia uma jornada tranquila.

Depois de uma hora dentro do comboio sempre com gente a entrar e deste estar suficientemente cheio (para os olhos de um ocidental, suficientemente cheio já teria sido há muitos minutos atrás), finalmente ouve-se o esperado apito de partida e, com os solavancos iniciais do arranque, os espíritos alegram-se por já estarmos a caminho.

Seguem-se 11 horas de histórias, situações impensáveis, de chuvas de milho em cima das nossas cabeças, de mamãs a mudarem fraldas com uma agilidade notável, de formigas a caírem-nos em cima provenientes das cargas que vão nas prateleiras superiores, de trocas de palavras macuas que ia pedindo que traduzissem (gritava zangada uma mulher da gare de uma estação para um dos passageiros que lhe pedia para mostrar o que vendia quando o comboio já partia: " Cê, cê...!! É maluco!! Deve capinar! Deve capinar muito!!")...

As estações ou apeadeiros estão sempre abarrotados de pessoas de todas as idades que dependem dos miseráveis trocos resultantes da venda dramática de alguma coisa a alguém que vai no comboio. O facto de conseguirem vender ou não vai marcar o seu dia de barriga cheia ou vazia. Há esforço, suor, todo o empenho por muito pouco. Os miúdos correm angustiados ao lado do comboio, descalços e por cima das pedras, na iminência de ficarem sem produto que já subiu para o comboio e sem dinheiro que ainda não lhes foi pago. Sofre-se muito, só de ver.

E depois tudo continua, naquele ritmo lento até à próxima paragem, pelo meio de montes místicos (a geologia desta zona é única no mundo), de cheiros novos (pelo menos quatro cheiros nunca tinham passado antes pelo meu nariz!), já com os olhos secos do vento e do pó que atravessam a janela desvidraçada a bater na face e com o rabo quadrado pela escassez de coisas moles que o aliviem, mas de sorriso interior por se estar no Niassa, conhecida por Província esquecida, e neste Moçambique que tanto nos dá.
21
Mai11

[as melhores do serviço de urgência] mães de primeiras águas

beijo de mulata
Serviço de Urgência, tarde de sexta-feira ao cair da noite. Uma mãe de primeira viagem, enfermeira de profissão vem com o seu bebé de três semanas. Motivo da vinda: choro persistente. Compreendi a situação. É muito diferente falar de cólicas e saber em teoria o que são cólicas ou ter um bebé com cólicas lá em casa. Sobretudo quando se é uma jovem profissional de saúde, a quem tudo passa pela cabeça quando se trata do próprio filho, ainda para mais com o raciocínio toldado pelo desconforto físico, pelas modificações do corpo, pelas hormonas e a privação de sono e ainda pelos tratados de enfermagem que insistem em atirar para dentro do cérebro diagnósticos tenebrosos alternativos. Absurdos, mas enfim, o raciocínio não tem a mesma desenvoltura nesta fase.

Depois de a tranquilizar ela despede-se com um sorriso aliviado e bem disposto. O primeiro sorriso completamente descontraído desde que me entrara na sala. Faz menção de se levantar, mas depois lembra-se de algo:

- Doutora, peço desculpa, mas já que estou aqui aproveito para lhe fazer uma pergunta.
- Claro! O que se passa?
- É que tenho dúvidas sobre como arrumar a pilinha do bebé dentro da falda. Estava a pensar colocá-la alternadamente para a direita e para a esquerda para não criar vícios. O que acha?

[Meus queridos amigos, depois desta estejam à vontade para fazer qualquer pergunta que seja!]

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