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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

13
Abr11

[adama] a vida é simples, insisto

beijo de mulata


Guiné-Bissau
(Fotos daqui)

(continuando...)

Meses depois, estava eu em casa a dormir, a recuperar do banco do dia anterior, quando recebo um telefonema de que reconheci num relance o indicativo da Guiné-Bissau: só podia ser da Adama, que me telefonava de vez em quando para dar umas atabalhoadas notícias, no seu português cada vez mais difícil de compreender. Daquela vez, a voz menos jovial pedia-me que lhe telefonasse de volta porque não tinha saldo. Em vão tentei ligar. Um sotaque africano insistia que me tinha enganado no número, que aquele não estava atribuído. Estranho. Muito estranho. Telefonei aos tios de Portugal, mas não tinham notícias dela porque tinham acabado de chegar do estrangeiro. Que de qualquer modo era sempre muito difícil contactar com ela porque na localidade onde vivia não havia rede de telemóvel. Só quando se deslocava a Bissau é que telefonava. Asseguraram-me que mais hora menos hora haveria de conseguir contactar com ela. “A rede lá é muito instável. Ora vai, ora vem.” Que continuasse a tentar, não havia mais a fazer. Tentei em vão. Fiquei perturbada. O que se passaria? Telefonei aos tios no dia seguinte, mas continuavam sem notícias.

Nessa tarde fiquei a saber pela directora do internamento que a Adama tinha falado com a voluntária que a ajudara a voltar para a Guiné e que lhe tinha dito que estava a passar fome, cheia de dores de cabeça e em todo o corpo... Gelei. Que ela não queria voltar para Portugal, não era nada disso, tinha feito questão de dizer, mas que estava a passar muito mal. Pensámos o pior... Para além do horror da fome poderia ter tido um AVC, uma trombose periférica... Que poderíamos fazer por ela? Uma coisa é certa, não tinha sido para isto que a tínhamos mandado de volta para a Guiné...

Só fiquei a saber do desenrolar dos factos na segunda-feira seguinte, quando passei na Unidade de Adolescentes. A voluntária mais um vez tinha sido o seu anjo da guarda. A história foi mais ou menos assim: No momento em que tinha falado com a Adama a voluntária estava no seu local de trabalho, ao lado de uma amiga, que por sua vez tinha um amigo riquíssimo, dono de uma ilha na Guiné, onde ia amiúde passar férias... Falaram com ele e o senhor tinha ficado muito sensibilizado com a história e, por um extraordinário acaso, iria para a Guiné no dia seguinte.

Conseguiram localizar a Adama em Bissau através de um jornalista, cujo contacto nos tinha sido dado pelo tio já no aeroporto, no momento da partida para a Guiné. Segundo o tio, tratava-se de um senhor de toda a confiança e que falava bem a língua local, portanto podia fazer de intérprete entre o magnata da ilha e a nossa protegida...

Ao que parece, o jornalista teve de interromper alegremente uma reunião com o Ministro do Interior para mediar a conversa! Quem me dera ser uma mosca africana para lá ter estado... No dia seguinte a Adama telefonou novamente à voluntária. A voz completamente diferente agradecia, porque já não tinha dores e estava tudo bem. Não telefonava mais porque ia regressar para Galumaro, a sua aldeia. A mãe da Adama também falou, com a voz embargada, uma única palavra em Português: Obrigada! As restantes palavras eram incompreensíveis, mas também não era necessário traduzir.

Lembrei-me há dias desta história, não sei porquê, mas continuo a achá-la inspiradora. Foi extraordinária a corrente de solidariedade que se criou em torno desta menina tão especial para a ajudar a cumprir o seu desejo de permanecer junto da família. E é curioso que tudo quanto lhe pudemos dar no tempo em que cá esteve, desde ter aprendido a falar Português, a conhecer as letras, até ao tratamento da doença, passando pelos amigos que fez, nada disto teria sentido para ela se não tivesse podido voltar. São tantas as vezes que pensamos que os meninos africanos com doenças crónicas não podem nem devem regressar ao seu país, que nem sempre conseguimos sequer pensar como poderemos organizar o seu regresso. Mas como dizia sempre minha tutora, “Se eu tivesse a minha palhota, era na minha palhota que eu haveria de querer estar!”

Depois disto nunca mais tivemos notícias dela... Não tenho muitas ilusões, sei que a vida é dura, que no mato há muitas doenças e que a saúde dela era frágil. Mas quero acreditar que está bem, que a vida continua a ser simples e que a sorte lhe sorri uma vez mais todos os dias...

De vez em quando tenho vontade de a ir procurar. Não seria impossível talvez... Temos o nome dela, a localidade, a história de vida, da família e da doença. E já percebi, por experiência própria, que em África só não se encontra quem não quer mesmo ser encontrado. Quem sabe se um dia alguém não completa esta história?

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