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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

12
Abr11

[adama] o que faz a vida ter sentido...

beijo de mulata
Carnaval em Bissau
(Foto da net, mas não me lembro de onde, desculpem...)


(continuando...)

Durante o internamento connosco, a Adama foi operada e ficou a ver razoavelmente, mas percebemos que a menina não tinha só uma cegueira grave. Tinha uma anemia e uma doença genética que a tornava susceptível a AVC e tromboses venosas. Por milagre nunca tinha tido uma coisa nem outra, mas teve uma complicação no internamento (uma neuropatia) que nos deu água pela barba até a conseguirmos pôr a andar novamente e sem dores...

Enquanto esteve connosco cativou-nos a todos. Aprendeu a falar Português, aprendeu as letras, os números, aprendeu a ler. Conheceu as ruas, a televisão, o computador, a internet, aprendeu a manusear monitores cardio-respiratórios, bombas infusoras, aprendeu os nomes dos medicamentos e a função de cada um. Foi de fim-de-semana para casa de várias amigas, companheiras de quarto que conhecera no internamento. Passou o Natal em casa de uma enfermeira e o ano novo em casa de outra. Não faltou quem se oferecesse para a levar para casa. Só não a conseguimos convencer a voltar a beber leite... "Problema de olho!", respondia invariavelmente com um ar quase ofendido. Questão absolutamente inargumentável! Também acho que nunca aprendeu a gostar da nossa comida...

Entretanto, meses depois, a menina já estava melhor e queria voltar para junto dos pais. Mas era arriscado... E se tivesse um AVC? E se a neuropatia recidivasse? E se descompensasse com uma malária ou outra doença tropical? E se... e se... Foi inamovível. Queria voltar para casa. Como era possível, comentavam as pessoas... Como era possível alguém que tinha agora luz eléctrica, água corrente, acesso a todo o conforto e informação, acesso à educação também... como era possível querer voltar para o mato, para uma palhota? Mas também havia quem a compreendesse... [Não, meus amigos, eu não era a única a compreender as saudades dela! A vida é mais simples do que pensamos. E não é preciso ter vivido no mato para saber que o preço a pagar por não ter o mesmo conforto é muito pequeno...] E, com a ajuda de uma voluntária do nosso hospital, foi possível angariar dinheiro para lhe pagar a viagem de regresso.

Na mala levava medicação para um ano inteiro, a referência do médico que a poderia acompanhar, com quem tínhamos contactado a partir de Lisboa, a promessa de que lhe enviaríamos mais medicamentos com a ajuda dos tios quando tivéssemos um portador, um telemóvel para falar connosco e muitas recordações do carinho dos enfermeiros, auxiliares e médicos que a tinham apadrinhado e acarinhado naquela estadia tão longa no hospital... Fomos ao aeroporto despedir-nos. Também nos ia deixar saudades...

12
Abr11

[adama] histórias que fazem a vida valer a pena...

beijo de mulata
Menina...
(Carnaval em Bissau, foto daqui)

Há alguns anos atrás, no meu primeiro ano da especialidade de Pediatria, durante o estágio na Unidade de Adolescentes internámos uma menina de 16 anos, vinda da Guiné-Bissau ao abrigo do protocolo de cooperação com os países de expressão portuguesa. A doença que a fizera vir fora uma cegueira progressiva. A junta médica em Bissau tinha assinado a autorização para a transferência mais um ano antes, mas como quem tem a responsabilidade de pagar a viagem para Portugal é a própria família do doente, a menina tinha tido de esperar esse tempo todo até a aldeia em peso se ter conseguido movimentar para a ajudar a comprar uma passagem para Portugal. Uma passagem só de vinda...

Já no hospital, os tios com quem tinha vindo viver explicaram-me como fora que tudo se tinha passado. Que a menina cedo começara a deixar de ver, mas que os pais tinham negado a doença inicialmente. Pensavam que era uma "doença tradicional".
- Uma doença tradicional? Porquê uma doença tradicional? - interroguei-os.

Ao que parece os pais pertenciam a etnias diferentes e terem-se casado significara a quebra de um tabu profundamente enraizado. Tinham traído os antepassados, renegado as raízes. E sempre souberam que o facto de não terem conseguido resistir ao apelo daquele amor impossível poderia ter consequências graves nos filhos... A nossa menina tinha sido a primeira filha daquele casal. Chamaram-lhe Adama, que significa mulher bonita, amante ardente, em honra àquela paixão arrebatadora, que apesar do sofrimento pela culpa os fazia tão felizes.

Só quando os olhos da Adama passaram de escuros a azulados e, por fim, a totalmente brancos e a menina deixara de conseguir encontrar o caminho para o fontanário para ir buscar água para a família é que os pais se renderam à evidência de que não podiam continuar a fingir que não reparavam no que toda a aldeia já sabia... Foi então que começaram a procurar ajuda...

Seguira-se um longo périplo, primeiro com o curandeiro mais famoso das redondezas, que se recusara a ajudá-los por não haver remédio para a zanga dos antepassados. Desconsolados, procuraram outro curandeiro, igualmente conceituado mas muito mais longe, desta feita um homem de mente mais aberta, também ele casado com uma mulher de outra etnia e que delicadamente não se referira ao tabu quebrado pelos pais. Atribuíra a causa dos olhos brancos ao excesso de leite de cabra, que a menina bebia desde criança, já que o pai era criador de gado... Mas nada parecia ajudá-la. Acabaram por levá-la para o Hospital Simão Mendes, na capital, onde ficou internada durante meses, sem que também pudessem fazer o que quer que fosse por ela... Até que se decidiram a enviá-la para Portugal.

(continua...)
12
Abr11

[inspiração pra uma despedida] a dor da gente não sai no jornal

beijo de mulata


Tentou contra a existência
Num humilde barracão,
Joana de tal, por causa de um tal João. 
Depois de medicada, 
Retirou-se pro seu lar. 
Aí a notícia carece de exatidão,
O lar não mais existe; 
Ninguém volta ao que acabou. 
Joana é mais uma mulata triste que errou. 
Errou na dose, 
Errou no amor; 
Joana errou de João.
Ninguém notou,
Ninguém morou na dor que era o seu mal; 
A dor da gente não sai no jornal...

Haroldo Barbosa/ Luiz Reis, 1961

(Obrigada ao Vítor, correspondente honoris causa deste mato, agora em parte incerta...).

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