"Quando a noite cai, o teu amor é como um fogo!"
(Murrupula, Moçambique)
Se há pessoas que me chamam de louca porque de vez em quando peço licenças sem vencimento para ir para Moçambique trabalhar como voluntária, eu respondo sempre que me chamam louca porque não conhecem as minhas amigas que, bem instaladas na vida, rescindiram contratos em Portugal para irem fazer voluntariado durante anos da sua juventude. Só não lhes consigo chamar loucas também porque sei que foram e são muito felizes! Deixo-vos hoje o relato na primeira pessoa da minha amiga V. sobre a Páscoa que viveu em Murrupula, Norte de Moçambique."
Salama owani? Miyo salama! [Estão todos bem em casa? Eu estou bem!]
Acabo de chegar de Murrupula, da missão, onde passei estes dias da Páscoa e gostaria de partilhar convosco a noite mais mágica da minha vida, que passei ao lado da minha família africana, o Pe. Jacob, o Irmão Tobias, o Irmão Rui, nove seminaristas, os vinte e três rapazes órfãos que vivem no lar da Missão, o cozinheiro Rosário (o homem que nos mantém a todos vivos), várias dezenas de trabalhadores das machambas da Missão, carpinteiros, guardadores de vacas e ovelhas, a minha grande amiga Eugénia... e o
Tejo e o
Tajo, que são, de certeza absoluta, os dois macacos mais mimados do mundo!
Aqui a Páscoa é vivida de uma forma muito diferente da que eu estou habituada a viver em Portugal, no meu Alentejo. Não são só os sabores, os cheiros, as cores, as cerimónias, os cânticos, a espiritualidade… mas passa por outra forma de encarar a paixão, a morte e a ressurreição.
Tinha ouvido falar da magia que se vive durante as cerimónias da Páscoa mas vivenciá-la aqui e ao vivo tem outro sabor. A Páscoa para mim já tinha começado na tarde de Sexta-feira Santa, na vila, onde foi encenada a Via Sacra pelos seminaristas, pelo grupo de jovens e pelos rapazes do lar da Missão. À noite, depois da comemoração muito simples do aniversário da Eugénia, os futuros baptizados que já tinham chegado à missão, “apagaram o fogo velho”. Formaram uma fila, cada um com um pedaço de lenha com uma ponta a arder e foram apagá-la numa taça feita de barro com água. Isto é interpretado como um apagar dos pecados, para um início de vida nova. Uma vida que iria começar na noite seguinte.
Após o jantar e todos os preparativos que ocuparam todo o dia, os futuros baptizados e os futuros noivos, os padrinhos e familiares e os restantes membros das comunidades reuniram-se junto da igreja para assistir ao “acender do fogo novo”. E a magia de que alguém me tinha falado começou...
Tentem imaginar uma roda de pessoas, tendo no meio uma enorme pilha de madeira preparada à espera do “fogo novo” e uns grupinhos de cinco homens e três mulheres (eu também fui, incentivada pelo Pe. Jacob e movida pela minha curiosidade) de cócoras, junto de dois pedaços de madeira que cada um sem cessar e rotativamente ia friccionando para manualmente “fazer o fogo”. Todos na roda humana esperavam este “nascimento” para acender o círio pascal e assim iniciar as cerimónias pascais deste ano.
Para quem está habituado a estas andanças, diz que desta vez a pequena brasa, que se formou do trabalho conjunto de sete pessoas, nasceu rapidamente... E a pequena brasa, celebrada com gritos de espanto e de júbilo, foi aninhada com todo o cuidado em “raspas” de madeira e depois de bem “pegada” e forte, foi queimar a fogueira que ali estava à sua espera.
De pequena, a fogueira cresceu para dar lugar a um fogo vivo, para contentamento, cânticos, palmas e alarido de todos. O círio pascal foi aceso a partir deste “fogo novo”, iluminando o caminho até ao altar da igreja. Este deu a sua luz, em conjunto, com as velas, e foi com esta luz que se realizaram os 97 baptismos de adultos e os 56 casamentos (!), que ali aconteceram nessa noite. Para receber o baptismo tinham uma tina de latão e uma cabaça que serviram de pia e “concha” baptismal, mas num local onde nem luz eléctrica ainda há, estas condições não incomodam o povo, que se encontrava ávido pela presença de Deus em sua vidas. É curioso observar a fé e a persistência deste povo, quando pensamos que muitos vieram de muito longe, andaram muitos quilómetros a pé para estar nesta noite e nesta igreja para receber o seu baptismo ou matrimónio, para assinalar a ressurreição do Senhor, de uma forma tão bonita.
A missa prolongou-se por mais de cinco horas mas, para a maioria dos que estavam presentes, passou bem depressa, entre cânticos, leituras e muita alegria pela celebração que se estava a realizar, e no final da missa, com todos sentados cá fora em silêncio, o nascer do sol sobre o monte deixou-nos de lágrimas nos olhos."