05
Mar11
[vozes brancas #42] ...e vidas pequeninas
beijo de mulata
Os médicos (felizmente) também se enganam. E eu tenho tido a graça de uns enganos muito felizes... Quem convive regularmente comigo sabe que acompanho quase diariamente duas meninas gémeas extremamente doentes. Quase sempre internadas, com internamentos longos por uma sintomatologia monótona e desesperante (vómitos incoercíveis), um atraso de desenvolvimento gravíssimo para a idade e um crescimento mais do que deficiente. Têm uns pais fantásticos, que apesar de todo o desgaste emocional, sempre a dobrar, já me conseguiram dizer coisas como: "Ao menos as nossas meninas têm-nos a nós, que as adoramos. Há crianças doentes em instituições que não têm mesmo ninguém..."
Há dois anos a mãe ligou-me a dizer que achava que estava novamente à espera de bebé... Que não tinha sido planeado, mas que estava feliz. Gelei. Acho que nem consegui dar-lhe os parabéns de imediato... Já tínhamos tido "a conversa" e eu já lhe tinha dito que a doença das meninas, apesar de não diagnosticada, era genética e que a mãe era portadora da mutação com quase 100% de certeza. Ela, pelos vistos, não tinha entendido a situação nessa perspectiva. Na analogia da garrafa de vinho, eu tinha-lhe dito que a garrafa estava mesmo quase vazia e ela ouviu que podia estar talvez um bocadinho cheia. Nem que fosse só um bocadinho. Controlei-me. Enviei-os à consulta de aconselhamento genético pré-natal mas não fui com eles. Era uma conversa demasiado íntima para estarem na presença de outra pessoa, pensei. Mas depois da consulta, quando lhes perguntava o que lhes tinha sido dito, respondiam com evasivas. Claramente não queriam falar sobre o assunto.
Quanto a mim, por um lado acreditava que lhes tinha sido bem explicada a elevadíssima probabilidade de terem um terceiro filho muito doente e que a decisão em consciência era deles. Por outro lado tinha ideia de que eles estavam completamente a leste daquilo que os esperava. Durante meses tentei puxar o assunto de todas as maneiras e feitios mas a mãe ignorou-me olimpicamente. Tenho a certeza de que se me tivessem perguntado directamente eu lhes teria respondido sem hesitar aquilo que pensava. Mas, por fim, a gravidez chegou às 24 semanas e eu deixei de falar no assunto. Só mais de um mês depois é que me conseguiram fazer "a pergunta"... Mas claro, o que é que eu iria responder já às 30 semanas a um coração de mãe tão maltratado? Que nos tínhamos de encomendar a Deus e confiar na sorte. Que tudo haveria de correr bem. (Como dizia a minha avó, ao mal feito aberto o peito.)
E há um ano e meio nasceu um menino. Comecei a segui-lo com o coração tão pequenino... Desolada porque, infelizmente, seria a mim que caberia, mais tarde ou mais cedo, dar a má notícia aos pais. Mas o tempo passava e o menino ia sorrindo, segurando a cabeça, olhava para todo o lado com um olhar vivo e curioso, palrava, comia que se desunhava, aumentava de peso e crescia como se nada fosse... Para meu espanto, cada aquisição era uma conquista sem esforço. E quanto mais o tempo passava, maior era a certeza que íamos tendo de que o menino era um totalista do Euromilhões. Mais de 90% de probabilidade de ser doente e sai-nos um menino normal!
Na semana passada foi a consulta dos 18 meses. Tirei a prova dos nove. Como é quase intuitivo, a mais cabal demonstração de inteligência de uma criança pequena é o jogo simbólico. É a capacidade de brincar ao faz-de-conta. Perguntei aos pais se ele já brincava.
- Sim, Doutora - responderam. - Já vai buscar os bonecos, dá-lhes banho, faz ó-ó e dá-lhes de comer. Ah... e faz uma coisa muito engraçada. Nunca vai buscar só um. Anda sempre com dois ao mesmo tempo. Os "filhinhos" dele também são gémeos!
Há dois anos a mãe ligou-me a dizer que achava que estava novamente à espera de bebé... Que não tinha sido planeado, mas que estava feliz. Gelei. Acho que nem consegui dar-lhe os parabéns de imediato... Já tínhamos tido "a conversa" e eu já lhe tinha dito que a doença das meninas, apesar de não diagnosticada, era genética e que a mãe era portadora da mutação com quase 100% de certeza. Ela, pelos vistos, não tinha entendido a situação nessa perspectiva. Na analogia da garrafa de vinho, eu tinha-lhe dito que a garrafa estava mesmo quase vazia e ela ouviu que podia estar talvez um bocadinho cheia. Nem que fosse só um bocadinho. Controlei-me. Enviei-os à consulta de aconselhamento genético pré-natal mas não fui com eles. Era uma conversa demasiado íntima para estarem na presença de outra pessoa, pensei. Mas depois da consulta, quando lhes perguntava o que lhes tinha sido dito, respondiam com evasivas. Claramente não queriam falar sobre o assunto.
Quanto a mim, por um lado acreditava que lhes tinha sido bem explicada a elevadíssima probabilidade de terem um terceiro filho muito doente e que a decisão em consciência era deles. Por outro lado tinha ideia de que eles estavam completamente a leste daquilo que os esperava. Durante meses tentei puxar o assunto de todas as maneiras e feitios mas a mãe ignorou-me olimpicamente. Tenho a certeza de que se me tivessem perguntado directamente eu lhes teria respondido sem hesitar aquilo que pensava. Mas, por fim, a gravidez chegou às 24 semanas e eu deixei de falar no assunto. Só mais de um mês depois é que me conseguiram fazer "a pergunta"... Mas claro, o que é que eu iria responder já às 30 semanas a um coração de mãe tão maltratado? Que nos tínhamos de encomendar a Deus e confiar na sorte. Que tudo haveria de correr bem. (Como dizia a minha avó, ao mal feito aberto o peito.)
E há um ano e meio nasceu um menino. Comecei a segui-lo com o coração tão pequenino... Desolada porque, infelizmente, seria a mim que caberia, mais tarde ou mais cedo, dar a má notícia aos pais. Mas o tempo passava e o menino ia sorrindo, segurando a cabeça, olhava para todo o lado com um olhar vivo e curioso, palrava, comia que se desunhava, aumentava de peso e crescia como se nada fosse... Para meu espanto, cada aquisição era uma conquista sem esforço. E quanto mais o tempo passava, maior era a certeza que íamos tendo de que o menino era um totalista do Euromilhões. Mais de 90% de probabilidade de ser doente e sai-nos um menino normal!
Na semana passada foi a consulta dos 18 meses. Tirei a prova dos nove. Como é quase intuitivo, a mais cabal demonstração de inteligência de uma criança pequena é o jogo simbólico. É a capacidade de brincar ao faz-de-conta. Perguntei aos pais se ele já brincava.
- Sim, Doutora - responderam. - Já vai buscar os bonecos, dá-lhes banho, faz ó-ó e dá-lhes de comer. Ah... e faz uma coisa muito engraçada. Nunca vai buscar só um. Anda sempre com dois ao mesmo tempo. Os "filhinhos" dele também são gémeos!