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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

28
Fev11

[outras palavras] canção de um dia angustiado...

beijo de mulata
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos, as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade
28
Fev11

[meus queridos amigos] eu sei que é a noite dos óscares, mas...

beijo de mulata
...já passa das três e meia da madrugada e ainda vagueiam por aqui no mato mais de 20 pessoas! Pessoal, aqui no mato não há luz, isto está infestado de mosquitos com malária, há sapos e centopeias na casa de banho - e às vezes escorpiões (ratos, felizmente, nunca tivemos). Mas adiante, são três e meia da madrugada. Já passa, até. Vão para a cama que se não amanhã ninguém vos atura! Ou será que são todos cônjuges do outro pessoal que está a ver o tapete vermelho e os vestidos no Teatro Kodak em-directo-para-mais-tarde-fofocar? Aquele pessoal que tem o diagnóstico de aborrecido até à quinta casa e só ainda não foi para a cama porque mal-parece-ir-me-deitar-enquanto-ela-está-a-ver-uma-coisa-que-tanto-prazer-lhe-dá-não-posso-fazer-uma-desfeita-dessas? Bem, se for esse o caso, animem-se. Já faltou mais! Mas aqui para nós, que ninguém nos ouve... assim com jeitinho não se iam deitar à mesma? É que já vão sendo horas, canário*!

*Nota da Autora - Ao contrário da transmissão dos Prémio da Academia, que tem um atraso de cinco segundos para evitar polémicas no uso do vernáculo, a transmissão deste blogue não possui qualquer desfasamento de parágrafos, pelo que se opta por utilizar moderação na linguagem.
27
Fev11

[como foi que tudo aconteceu] a primeira vez em áfrica...

beijo de mulata
(continuando)

A minha estreia em Moçambique não podia ter sido pior… O meu avião tinha descolado da Portela com duas horas de atraso e ainda tinha ido primeiro a Joanesburgo, uma rota programada mas não habitual para aquele dia, pelo que chegámos a Maputo duas horas depois do previsto e quatro horas depois de os meus anfitriões terem chegado ao aeroporto para me buscar. Como se isso não bastasse, a fila para carimbar vistos e passaportes era interminável (os vistos e passaportes à primeira nunca estão bem, é sempre preciso fazer muitas contas, de cabeça, de papel e, às vezes, de carteira, para fazer ver aos funcionários da imigração que os dias que lá vou ficar são os dias que constam no bilhete de regresso e que não, não tenho de lhes dar dinheiro para me fazerem entrar no país porque o vou fazer legalmente!).

Logo a seguir, sem tempo para respirar fundo, tive de enfrentar sozinha o problema seguinte, que foi passar na alfândega com a bagagem, sem fazer a menor ideia do que era a alfândega de Mavalane. Eu sempre fui optimista, mas do meu estado de espírito na altura só me recordo de uma vaga sensação de pânico, porque afinal de contas estava completamente sozinha. E em África pela primeira vez…

A angústia confirmou-se quando me deparei frente-a-frente com um cartaz já amarelecido que numa das paredes anunciava em letras garrafais: “Senhor passageiro, suborno é crime!” Ai, valesse-me Nossa Senhora das Alfândegas, que aquilo não augurava nada de bom… O aeroporto de Maputo era conhecido na altura ser muito difícil de atravessar sem ficar com objectos de valor apreendidos pelos funcionários, a quem quase sempre era necessário oferecer dinheiro e presentes para se poder passar com a bagagem. Assim mesmo, à descarada... Ou melhor, era conhecido mas - passe o pleonasmo à Marquês de la Palice - apenas por quem conhecia o facto… Eu não conhecia nada e a primeira vez que tal me passou pela cabeça foi mesmo segundos antes do confronto final. Ou seja, com tudo isto, já passava das 23 horas, numa jornada que para mim começara às 4 da manhã quando, exausta e transpirada, apreensiva com o que me esperava assim que transpusesse aquela última barreira que me separava de Maputo, furiosa pelo que tinha acabado de passar na imigração e desesperando por um banho e por uma cama me aproximei do tapete da alfândega. Respirei fundo uma última vez: “Calma!”, repeti para mim própria. “Close your eyes and think of Africa!”

(continua)
26
Fev11

[vozes brancas* #40] as cores do mundo

beijo de mulata
Dois anos e meio, três anos. Já cheguei à conclusão que é nesta idade que eles mais nos surpreendem e nos divertem com as suas concepções do mundo e extrapolações de linguagem. Desde o meu sobrinho, que se recusa a acreditar que o nome da mãe é Catarina desde que descobriu que a avó lhe chama "Filha" até um menino de três anos (sobredotado, não tenho dúvidas) que ontem aprendeu a letra D e, depois de eu lhe explicar que D era a letra do nome dele, apresentou-me de imediato uma lista interminável de palavras começadas por D, que incluía as palavras Domingo e "thalada"... (bom, para além de sobredotado também era "sopinha de massa"... but nobody is perfect, right?)

Depois comecei a perguntar-lhe as cores, abri um livro e mostrei-lhe a imagem de um comboio. Apontei para a janela e ele respondeu de imediato que a "thanela" era "athul".
- Azul quê?, perguntei-lhe.
- "Athul-thanela"!

[Já vos disse que tenho a melhor profissão do mundo? É que gosto sempre de repetir, não vá existir por aí alguém que ainda não tenha percebido...]

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
25
Fev11

[conta-me como foi que aconteceu...] the days before

beijo de mulata




Maputo, Moçambique

(continuando...)

Na altura ainda não existia internet de banda larga em Moçambique. No local para onde eu ia só alguns meses antes é que tinham colocado electricidade e telefone, as comunicações eram caras, difíceis e pouco fiáveis e só tinha conseguido falar pessoalmente uma única vez com o Padre Zé Maria, director da Casa do Gaiato de Maputo. A única coisa que ele tinha ficado a saber sobre mim era que eu era estudante de Medicina, que queria muito ir e que estava disposta a ajudar no que fosse preciso. A única coisa que eu tinha ficado a saber sobre a Casa do Gaiato era que a minha ajuda – ou qualquer ajuda – seria sempre bem-vinda e que trabalho não me faltaria.

Não conhecia ninguém em Moçambique. Não conhecia ninguém que já tivesse feito voluntariado em Moçambique e a pessoa que me tinha ajudado a estabelecer o contacto pouco me tinha adiantado sobre o país, o dia-a-dia ou mesmo sobre a Casa do Gaiato…

Algumas vezes pensei se não seria loucura da minha parte meter-me num avião para o outro lado do mundo nestas condições. Ainda hoje penso que foi loucura da minha parte ter-me metido no avião nestas condições. Mas nunca dei parte de fraca, isso teria sido a morte dos meus sonhos, sobretudo se tivesse vacilado perante a minha família, que nunca me teria deixado ir se me visse angustiada... Só falei dos meus medos ao meu melhor amigo (sim, meus queridos amigos, esse mesmo, o da crise de soluços...), que me respondeu simplesmente: "Princesa, close your eyes and think of England*!" E pronto, com esta me fui, lá fiz das tripas coração, arregacei as mangas e fiz-me ao caminho.

Eu não tinha qualquer ideia romântica sobre África. Não tinha curiosidade em conhecer parques naturais, praias lindíssimas, areais brancos a perder de vista, ver o nascer do sol no Índico, aprender línguas africanas ou assistir a danças e rituais de iniciação. 

Já tinha visto nascer crianças, mas nunca tinha visto ninguém morrer, nunca tinha estado num campo de refugiados, não sabia que era possível crianças irem à guerra e pegarem em armas, nunca tinha visto pessoas a viver numa lixeira e fazer disso um modo de vida. Mas também nunca tinha tido a sensação arrebatadora de que a vida podia fazer sentido a cada instante, desde uma criança que brinca depois de ter estado dois dias em coma, desde um abraço ao nascer do sol até a uma improvável, mas bíblica, chuva de sapos no final de um dia de sonho.

O que eu queria, na altura, era apenas dedicar as minhas férias a trabalhar como voluntária e ter uma experiência com crianças desfavorecidas. Estava, portanto, na ingenuidade dos meus vinte e poucos anos, a anos-luz de imaginar que tinha partido por um caminho sem volta para me apaixonar irremediavelmente...

(continua)

* Conselho habitualmente dado às jovens noivas da Era Vitoriana na noite de núpcias, erroneamente atribuído à própria Rainha Vitória. E como é que uma frase desta crueza aparente me conseguiu confortar assim? Isso, meus amores, é mesmo outra história...
24
Fev11

[áfrica, meu amor impossível] como foi que tudo aconteceu...

beijo de mulata
A baía de Maputo, Moçambique.

Já tenho tentado explicar aqui muitas vezes que a história desta minha paixão por Moçambique é agora tão complexa e tão longa que sempre que a tento contar me contradigo. E quando, por vezes, lá acerto, geralmente sou mal citada… Para isso acho mesmo que era preciso fazer como Gabriel García Marquez: vivir para contarla. E não foi para contar histórias que um dia decidi ser médica. Por isso o que vou fazer para Moçambique é trabalhar em hospitais no meio do mato e cuidar dos doentes de lepra, de sida e das crianças que precisarem de mim. Mas ainda assim, volvidas cinco vezes, cinco viagens, cinco missões, agora que já estou razoavelmente cá, razoavelmente viva, vou tentar, mais uma vez, contar-vos como que foi que tudo aconteceu, porque Moçambique é pródigo em imagens e emoções e foram-me sempre sobrando histórias…

O meu primeiro contacto com Moçambique foi enquanto ainda estava na faculdade, nas férias do quinto ano de Medicina, antes do meu ano de finalista. Fui para a Casa do Gaiato, na província de Maputo, onde passei um mês na savana, com encantos de primeira vez em África...


E a história começa com Moçambique a 12ºC, numa noite sem lua e pouco iluminada, onde a única coisa que se podia sentir era o cheiro largo a espaço aberto (imaginava eu, nos meus pensamentos românticos de primeira vez, que estava a sentir o “cheiro de África” e, de facto, o que sentia era algum do cheiro de África – o cheiro de um Aeroporto africano misturado com o cheiro a diesel de um avião da TAP...). O pouco que conseguia distinguir distintamente era AE OPO TO IN ERNACI NAL DE MAP TO, o letreiro de néon do aeroporto de Mavalane, literalmente com algumas luzes avariadas... E desta história só posso dizer que adorei, que não estava nada à espera do que acabou por ser e que, à medida que o tempo passava, mais eu ficava rendida a tudo quanto via...

(continua)
23
Fev11

[vozes brancas* #39] onde estão os bichos do chão

beijo de mulata
Ontem entrou na minha consulta um menino de dois anos e meio, agarrado às suas três chuchas amarelas como a uma botija de oxigénio nas profundezas do Índico, uma na boca, as outras para esfregar no nariz nos momentos de tédio e para roçar na parede... Cumprimentei-o e ele, educadíssimo de derreter qualquer coração de Pediatra, tirou a chucha para me dar um beijinho, mas deixou-as cair a todas ao mesmo tempo. Apanhou apenas a que tinha na boca e deu-ma:

- Olha, ti'a os mic'óbios, fa'favor...
- Claro, querido, mas o que são micróbios? - perguntei-lhe a sorrir.
- São os bichos do chão.
- Ah. E as outras chuchas não têm também bichos do chão?
- Não, só e'ta! E'tas não p'estam!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

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