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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

16
Dez10

[cenas da vida familiar] o natal

beijo de mulata

Pontualmente, no primeiro domingo do Advento, costumo montar o presépio e a árvore de Natal (artificial, claro está, que não quero alergias aos pólenes ou à lagarta do pinheiro cá em casa...). Este ano esmerei-me na decoração e nas luzes porque o meu sobrinho já tem dois anos e meio e eu estava em pulgas para ver a reacção daquele piratinha à decoração, às luzes e à música de Natal... Mas, para meu profundíssimo desgosto, aquela alma aventureira que se atira do berço como se tivesse areia por baixo, aquele explorador dos armários da cozinha, o grande engenhocas dos Tupperwares e das panelas teve medo da árvore de Natal e recusou-se a entrar na sala enquanto as luzes e a música estiveram ligadas (devo confessar que foi uma machadada na minha auto-estima de fada-do-lar em geral e de decoradora natalícia em particular, mas enfim, cada um é para o que nasce e eu, pelos visto, não nasci para decoradora de interiores...).

No dia seguinte, eu e ele mais recompostos, levei-o novamente à sala, desta feita ao meu colo e com as luzes de Natal apagadas para ter a certeza de que não haveria azar e ele já me pareceu mais ambientado. Fomos cumprimentar o pinheiro e explorar a decoração. Mostrei-lhe as bolas de Natal, os anjinhos e a estrela, mas ele pareceu muito mais interessado na própria árvore e comentou que o senhor pinheiro tinha pés, cabelo, braços e cauda... Ia rebentando a rir com aquela capacidade projectiva e congratulei-me com a falta de paciência do meu sobrinho para as pirosices de Natal da sua tia...

Só que os dias foram passando e o senhor pinheiro continuava a não ser amigo. Podia ter pés, cabelo e cauda, mas amigo é que ele não era... Assim, esta noite resolvi assumir que as luzes seriam um obstáculo à aceitação da árvore e retirei-as. Mas mal viu o pinheiro sem as luzes, o pirata atracou-se a ele como se não houvesse amanhã e ia destruindo, sem apelo nem agravo, a árvore de Natal juntamente com os enfeites.

E foi assim que, por motivos de força maior, me vi obrigada a recolocar as luzes e a acendê-las, garantindo um perímetro de segurança e preservando assim a integridade física do Senhor Pinheiro de Natal que enfim, isto de educar uma criança nos valores da tolerância e da coexistência pacífica é coisa que se vai aprendendo por tentativa e erro...
15
Dez10

[vozes brancas* #32] e vidas pequeninas

beijo de mulata
No Serviço de Urgência há alguns dias, a minha amiga R. estava a ver um menino de três anos e meio, com um ligeiro atraso de desenvolvimento mas com um ar vivo e reguila que fazia derreter qualquer um. E ela perguntava-lhe enquanto lhe ia espreitando os ouvidos:

- Então, como é que se chama a tua namorada lá da escola?
- [Com um sorriso malandro] É a mãe...
- Então, mas diz lá, como é que se chama a tua namorada?
- É a mãe! A mãe é que é a mais bonita de todas...
- Vá lá, diz-me só a mim, aqui ao meu ouvido.
- É a mãe. [E aproximando-se do ouvido dela, em segredo] É a Inês Campos. E quando eu crescer vou casar com ela e dar-lhe muitos beijinhos na boca!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
14
Dez10

[pássaros feridos] improbabilidades da vida no mato

beijo de mulata
A avenida do hospital
(Gilé, Zambézia)

E a propósito de traficantes de ouro... Há dois anos um negociante holandês, numa viagem de avioneta para o Gilé, teve uma avaria no trem de aterragem e ficou a sobrevoar a vila durante tempos infindos para tentar esgotar o diesel e procurar um local de aterragem mais plano e seguro do que o descampado onde costumava aterrar. A chegada de um avião é sempre um acontecimento empolgante no mato e uma meia hora em djika-djika sobre a vila foi suficiente para colocar metade do Gilé na rua em polvorosa e de nariz no ar, tentando perceber que raio é que se passava com aquele passarão branco que rosnava de perto, ameaçadoramente perto, parecendo lutar contra a gravidade sem se atrever a arriscar o inevitável encontro com o solo. Que lhe valesse Santa Rita de Cássia, padroeira das causas impossíveis, se os estivesse a ouvir...

Por fim, o grande pássaro ferido resolveu-se a aterrar... em plena avenida principal! E, apesar de ter visto homens, mulheres e crianças no meio da rua, "arreda que lá vai aço!", de repente, e sem qualquer aviso prévio, poisou no início da avenida e iniciou um sprint interminável de 300 metros digno de um filme de terror, no meio de poeira, gritos e aflições, acabando por embater contra o muro do hospital.

Miraculosamente, toda a gente escapou ilesa, desde as pessoas na avenida até ao piloto da avioneta, passando pelo impagável casal de perus que vive acantonado à porta do hospital e que persegue afincadamente os transeuntes, num glu-glu-glu trôpego e ameaçador. [Nota mental: escrever sobre esta dupla improvável. Será um post algo arriscado porque pode ter efeitos colaterais, não para o casal de perus, que não tem nada a perder, mas para a minha própria reputação. Mas enfim, talvez arrisque... Sabem que geralmente não resisto a uma boa história. E há uma contra-ameaça que talvez me proteja...]

Minutos depois, no meio do silêncio incrédulo que se seguiu àquele acidente odioso mas felizmente sem consequências, o povo viu sair, com apenas duas ou três escoriações na face, o piloto holandês. Mal recomposto do susto, procurou bebida e pousada na residencial do Sr. Pompisk (para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço!), que lhe disse, obviamente, que nessa noite estariam lotados e que a cerveja estava esgotada. Não se atrapalhou. No mato, para o bem ou para o mal, há sempre alternativas. Pagou regiamente a três agentes da polícia para ficarem a guardar a sua avioneta durante três dias, salvando-a assim da pilhagem mais que certa, pernoitou em casa do administrador e, no dia seguinte, partiu num jeep alugado para regressar dois dias depois com um camião e um grupo de mecânicos que desmontou o aparelho e o levou dali, para nunca mais regressar.
14
Dez10

[welcome to mozambique] das minas e suas armadilhas

beijo de mulata
Garimpo
(Foto surripiada de um outro site, provavelmente com direitos de autor, mas cuja origem não me recordo. Desculpem qualquer coisinha, sim? Se me lembrasse punha aqui o link, juro!)

Uma das riquezas do Gilé, a par com a reserva de caça turística e os cajueiros a perder de vista, são as minas de ouro e de pedras preciosas... Exploradas, obviamente, por grandes multinacionais estrangeiras, que nem por sombras investem no distrito ou nas pessoas. Criam alguns postos de trabalho, é certo, embora altamente precários, mas podiam talvez formar uma ou outra parceria com o Governo para, por exemplo, melhorar as vias de comunicação e assim até escoar mais facilmente o minério... Ganhavam todos... As multinacionais não são a Santa Casa da Misericórdia, disso já toda a gente sabe, mas estão a explorar a riqueza de um país em vias de desenvolvimento, valha-me a Santa! Podiam ter uma conduta ética e demonstrar alguma sensibilidade pela situação do povo, tanto mais que a actividade é extremamente lucrativa. Mas enfim, estou a repetir-me e até já sabemos que eu não gosto de falar sobre este tipo de coisas... E de qualquer modo eu não sou de cá, só cá vim ver a bola...

E onde há minas de ouro há sempre garimpeiros, homens que exploram ilegalmente o solo, numa actividade rudimentar, mas extremamente arriscada e, se possível, ainda mais destruidora do meio ambiente e poluente. As minas são uma atracção enorme para os jovens e são muitos os que lá deixam ficar a vida ou ficam mutilados em acidentes violentos com explosivos ou nos desabamentos de que ouvimos falar quase diariamente... Nunca me vou esquecer que no mesmo dia em que 33 mineiros ficaram soterrados no Chile e meio mundo se mobilizou para os resgatar, vimos chegar um jovem de vinte anos inconsciente, trazido por quatro homens, após ter estado soterrado durante uma manhã inteira na sequência do desabamento de um túnel. Minutos depois percebemos que o absoluto desconhecimento de como fazer um desencarceramento e o transporte em caso de traumatismo vértebro-medular tinha arruinado a vida daquele rapaz para sempre. Tinha ficado tetraplégico... Ainda tentámos fazer-lhe corticóides em altas doses e transferimo-lo para um centro com Neurocirurgia, mas não foi possível fazer mais nada por ele... Aquele acidente horrível e a operação de resgate desastrosa teriam impossibilitado a sua recuperação em qualquer parte do mundo...

E depois também há os traficantes estrangeiros que transaccionam ilegalmente o ouro e as pedras preciosas. Há uns anos ouvíamo-los chegar nas suas avionetas. Aterravam num descampado que hoje é o campo da bola, deixavam o seu guarda particular a tomar conta da aeromáquina, ficavam alojados na residencial do Sr. Pompisk (para ele, se nos estiver a ouvir, mais um grande abraço!) e, um ou dois dias depois, pela calada da noite, ouviamo-los levantar voo levando a riqueza extraída da terra vermelha com o sangue dos homens na força da vida. Tudo isto às claras, com os administradores impávidos, sem impostos e impune (como devem ser irresistíveis estas aliterações para alguém sem escrúpulos na conta bancária)...

Agora já não vemos chegar avionetas... desde que as estradas estão melhores que os traficantes chegam por terra, em jeeps com logotipos pintados que tento não ler nem fixar (não quero nem pensar que existem ONG e lavagens de dinheiro metidas no meio disto tudo...).
12
Dez10

[beijo-de-mulata fashion] o ouro da zambézia

beijo de mulata

Próximo do grande Centro Hospitalar do Gilé, na mesma rua da pousada do Sr. Pompisk (para ele, se nos estiver a ouvir, aquele abraço!), vivia o único ourives, o Sr. Elvis Pires. Não sei muito bem onde é que ele adquiria o ouro, mas suponho que o comprasse aos garimpeiros das minas situadas a poucos quilómetros da vila. Por acaso isso não me choca nada... Nem tenho a certeza de que os próprios garimpeiros teriam perfeita noção de que a exploração das minas e a comercialização do ouro da sua própria terra era ilegal, de tal forma era feita às claras. Choca-me é o lucro desenfreado das multinacionais que não ajudam o país e a quem o governo oferece a exploração de mão beijada a troco de benefícios que o povo não chega a ver... Mas adiante, que eu não tenho pretensões de Wikileaks. Nem sequer gosto muito de falar de assuntos sérios, sobretudo quando estou a contar uma história. Já bem me bastam tantos problemas que tenho de resolver no dia-a-dia e eu sem poder mudar de assunto...

Mas como eu ia dizendo, o Sr. Elvis Pires, a quem eu tratava respeitosamente por Sr. Ourives porque não conseguia evitar sorrir com o nome improvável, era um homem em muitos aspectos admirável. Apesar do nome, que nos faria pensar numa família vanguardista e com algumas pretensões, as suas origens eram as mais humildes. Oitavo filho de uma família de camponeses, viveu uma infância igual à da enorme maioria das pessoas do país: ajudava os pais no cultivo da terra, ia irregularmente à escola, dormiu no mato durante os anos da guerra civil para se esconder dos ataques dos "bandidos armados", teve a casa destruída inúmeras vezes, viu irmãos morrerem às mãos dos guerrilheiros e sucumbir a doenças banais, teve várias doenças graves e medo de morrer em todas elas, foi mordido por uma cobra e sobreviveu miraculosamente graças a um curandeiro (esta última parte talvez não seja assim tão comum, mas enfim...).  Mas o que fazia a diferença, o que fazia dele um homem remediado, que conseguia sobreviver e ganhar a vida sem ser de mão estendida ou dentro da máquina do partido, era ser um homem de iniciativa, um homem de sonhos e de trabalho.

Mas, por muito suor que empregasse nas suas obras, o Sr. Ourives, com muita pena minha, não era um artista nato. Não era um criador genial e inspirado. O melhor que posso dizer dele é que era um excelente homem de família, um empresário honesto, um executante razoável, mas um artista sem ideias e com um gosto sofrível...

Por isso, a Irmã Lurdes, que pelas minhas contas há-de vir a ser santa, nas suas idas a Paris trazia-lhe sempre catálogos de grandes marcas para ele se inspirar. O último tinha sido o da Cartier. Mas nem assim... Por um lado é preciso bom gosto por parte do artesão e, por outro, é preciso bom gosto e poder de compra por parte do mercado. Ou seja, mesmo depois de ter tido contacto com peças de elevadíssimo gosto em comparação com as suas, as obras de Elvis Pires continuavam as mesmas bolinhas e argolinhas algo toscas de sempre, que ele guardava amorosamente em pequenos saquinhos de comprimidos surripiados da farmácia do hospital...

Felizmente, este ano, a Irmã Lurdes teve uma ideia genial! Numa ida ao Carrefour de Paris lembrou-se de pedir o catálogo da ourivesaria... A face do Sr. Pires iluminou-se quando o viu! Era todo um novo mundo de pequenas ideias acessíveis, simples e baratas ao seu alcance. E foi também com base neste catálogo que o Sr. Ourives recebeu a sua primeira encomenda de uma médica europeia. Meus queridos amigos, eu tive de me esforçar genuinamente, mas no meio do catálogo do Carrefour de Paris consegui encontrar um modelo de brincos engraçado. Ele ficou a babar-se. Já antes me tinha tentado vender sem sucesso algumas das suas obras, mas eu, por muito boa vontade que tivesse, não tinha conseguido comprar nada. A minha intenção com esta encomenda era apenas dar trabalho a um homem de família (e, vá, também queria uma história para contar, pronto, já me conhecem...). Não tinha a mais pálida intenção de os usar mais tarde. Mas... e não é que ficaram perfeitos? É que até que não são feios... Actualmente uso-os de vez em quando. Por graça, mas uso.
12
Dez10

[boas festas!] à luz das velas...

beijo de mulata
como se canta o silvo das ondas?
como contar as estrelas do céu?
como se mede o amor de uma mãe?
ou como anotar o nascer de um bebé?

luz do anjos, luar,
luz da'strelas do céu,
velem o berço até romper a aurora...
gloria, gloria in excelsis deo
o deus menino veio ao mundo agora!

vamos vê-lo a belém
na noite fria...
o redentor do mundo
entre animais.
deus encarnado
e ‘sperança dos homens
ao colo da mãe
no primeiro dos natais


luz do anjos, luar,
luz da'strelas do céu,
velem o berço até romper a aurora...
gloria, gloria in excelsis deo
o deus menino veio ao mundo agora!

depois de ter decretado cinco dias de luto no mato e de ter passado um fim-de-semana meio adoentado (don't ask...), deixo-vos com a música de natal mais bonita que existe (a tradução é a possível... o sentido é uma reinterpretação e as vogais estão no sítio certo, mais do que isto não sei fazer... ou pior, muito pior: não sei sequer se é possível traduzir melhor...).
03
Dez10

[improbabilidades] e infortúnios

beijo de mulata
Esta manhã vi um adolescente de 15 anos com alergia alimentar ao tremoço, aos caracóis, ao amendoim e à cevada. E a rigorosamente mais nada. Lamentei-me profundamente. Não consigo sequer imaginar combinação mais infeliz. Talvez até mereça uma orientação vocacional... Será que se consegue tirar um curso superior sem participar no Rally das Tascas?

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