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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

27
Dez10

[improbabilidades] das coisas que só me acontecem a mim...

beijo de mulata
Uma criança amorosa e sua mãe no hospital do Gilé (Zambézia, Moçambique).
Não são as protagonistas desta história, tal como se vê pelo olhar vivo de ambas e pelo seu bom estado nutricional.


(continuando...)

Ora, como eu ia dizendo no post anterior antes de me ter perdido, certa noite, no hospital do Gilé, na enfermaria de Pediatria, sofri um pequeno incidente. Um incidente tão peculiar e improvável que se tivesse corrido mal talvez até se tornasse num caso clínico para publicar. Mas como tudo acabou em beleza, foi só mais uma aventura moçambicana e uma história para contar...

Nessa noite, como habitual, eu e a R. fomos ao hospital depois de jantar para ver como estavam os meninos e reparámos que havia uma nova criança na enfermaria, de seus 5 ou 6 meses, que tinha sido internada umas horas antes. Motivo de internamento: desnutrição grave. A mãe, que a acompanhava, estava também visivelmente desnutrida e doente e ia contando à R., no meio de tosse e calafrios, que a sua menina estava desnutrida porque ela tinha deixado de ter leite havia três semanas... Arrebitei a orelha! Que ouvira eu de raspão, voltada de costas a observar uma outra criança? Aquela mãe perdera o leite?! Metida em brios, entrei em acção de imediato:

- Mas, mamã, não tem nem uma gota que possa estimular? - perguntei.
- Não, não tem mais leite.
- Mas, mostre, mamã, não tem mesmo nem uma gota? - já vos disse que consigo ser chata-como-a-potassa? Só para confirmar...
- [Com um olhar infinitamente triste] Não...
- [No meu macua macarrónico] Mas olhe, nós podemos dar-lhe um medicamento para fazer o leite voltar. Não tem mesmo nem uma gota? Mostre lá...

Consegui, então, convencer a senhora a fazer a expressão do leite para ver se pelo menos teria "uma gotinha que pudesse estimular" e ela mandou-me, sem cerimónias, um esguicho de leite materno, abundante e certeiro, para o meu olho direito! E, pronto, meus amigos, foi então que compreendi que afinal, neste caso, o problema não era de todo ausência de leite materno. A menina tinha deixado de aumentar de peso porque estava doente e não porque a mãe tivesse perdido o leite!

Fiquei para morrer... Aquela senhora pálida, emagrecida, com feridas na boca e olhos mortiços bradava a quem a olhasse com mais atenção que estava infectada com o vírus da sida. Tinha uma carga viral certamente elevadíssima porque de outro modo a filha não estaria desnutrida e, portanto, juntando dois mais dois, isto queria dizer que eu tinha acabado de levar com um esguicho de leite materno, certeiro e abundante, carregadíssimo de VIH, directamente nos olhos...

A R., que assistira a tudo como que em câmara lenta e previra o acidente fracções de segundos antes, só não me esganou com o estetoscópio porque não calhou... Como pudera eu ser tão loira, tão imprudente, ó valesse-lhe a Santa do Pau Preto, repreendia-me enquanto me lavava os olhos com soro fisiológico e pegava na ficha da criança para confirmar o diagnóstico que literalmente se metia pelos olhos adentro... A ficha da criança confirmava a nossa suspeita: filha de mãe VIH positiva! Terminámos o que tínhamos a fazer e fomos para casa tentando acalmar-nos. Que a probabilidade de contágio era ínfima, que nunca tal se vira, Santo Deus, e então logo com leite materno, haveria coisa mais improvável? É que nem valia a pena pensar mais no assunto...

Mas eu estava com os cabelos em pé... Enfim, vocês já me conhecem. Eu até sou uma optimista por natureza. E sou católica. No fundo, eu estou quase sempre plenamente convencida de que "o meu pai é o dono disto tudo" e portanto nada de mal me pode acontecer, mas daquela vez, talvez pelo adiantado da hora, pelo modo como me dera conta do diagnóstico ou pela sensação de ter sido apanhada desprevenida, não estava descansada... E também sou da opinião de que, apesar de ser filha do dono disto tudo, nunca nos devemos fiar na Virgem sem tentar fugir. E instalou-se a dúvida, deveria ou não fazer profilaxia com anti-retrovirais? Lá peguei no telemóvel e telefonei para Lisboa a uma colega especialista nestes assados, que foi peremptória: era mesmo para fazer terapêutica. Tripla se possível, mas que não tomasse efavirenz porque aquilo dava umas insónias desgraçadas, que me poderiam arruinar o resto da estadia.

E pronto, lá me rendi à evidência de que tinha pouco mais de duas horas para começar profilaxia e teria de procurar arranjar anti-retrovirais, esquema triplo sem efavirenz, dentro do prazo de validade, àquela hora da noite, em que já mais de metade do Gilé estava deitado e a outra metade estaria a pensar que também já iam sendo horas de procurar a horizontal...

(continua)
27
Dez10

[pequenos milagres] a fonte dos amores que jorra do peito

beijo de mulata
Criança e sua mãe na Ilha de Moçambique, Nampula.

Faz agora três meses que uma bela noite, na enfermaria do hospital do Gilé, fui vítima de um pequeno acidente...

E vamos agora dar início a um longo parêntesis, que explica muita coisa sobre este pequeno incidente, é certo, mas que é totalmente desnecessário para a compreensão do essencial da história, portanto se tiverem de ir trabalhar/ dormir/ dançar/ outra-coisa-qualquer-que-honestamente-se-possa-fazer-em-vez-de-ler-este-blog ou se se recusarem a ler um post com este título inacreditavelmente piroso e quiserem passar directamente ao post seguinte, estejam à vontade.

[Meus caros amigos, quem vem aqui ao mato desde a sua fundação, quem já andou a cuscar ali pelas colunas da direita no estórias antigas, saudades loucas [andam amigas a beijar de boca em boca*] e foi parar a um milagre que certa vez aconteceu em Iapala, ou até quem me conhece pessoalmente sabe que sou uma fervorosa entusiasta do aleitamento materno e uma apaixonada, uma deslumbrada pelo realeitamento. Ou bem... pior, muito pior. Quem me conhece melhor sabe que tenho a mania que consigo fazer com que as mães tornem a produzir leite depois de o terem perdido e que levo sempre comigo, na minha bagagem para África, um medicamento que estimula a produção de leite e que anuncio como a última coca-cola no deserto!

Pior... ainda pior: quem me conhece verdadeiramente sabe que em África me recuso a fornecer leite de lata às crianças enquanto não estiver convencida de que o leite não vai voltar. E que já fiz verdadeiras loucuras neste capítulo, tais como como fazer com que uma tia, cujo filho mais novo tinha quatro anos e que já não mamava há dois, voltasse a ter leite para amamentar a sobrinha, uma prematura de 900 gramas que entretanto tinha perdido 200, mas que mamava de olhos abertos e com o vigor de quem se recusa a morrer! Isto porque a mãe da criança estava a morrer de sida e estávamos num local onde não havia água potável para fazer leite artificial para aquela bebé.

Quem assistiu a este último episódio da minha vida em África sabe que ninguém acreditou naquilo ao princípio. Que eu própria duvidei da minha sanidade mental várias vezes (embora nunca o tivesse admitido, era só o que faltava!). Quem lá esteve sabe que, enquanto o leite não voltou, eu ia dando com a tia e com as enfermeiras da maternidade em doidas e que consegui, efectivamente, enlouquecer a colega que estava comigo na altura. Eu própria ia ficando louca e provavelmente nunca recuperei deste estado assim tem-te-não-caias... Ou já estaria antes? No meio daquilo tudo, o que tenho a dizer é que a tia foi uma autêntica heroína e a sobrinha bebé uma lutadora de mão cheia.

Naqueles dias de desgaste e angústia socorri-me de tudo o que me lembrei ou inventei que nos pudesse ajudar: dei-lhe o tal medicamento que vai sempre comigo, mandei chamar o curandeiro mais afamado das redondezas, mandei buscar a D. Catarina - a antiga parteira de Iapala, que entretanto se reformara - e dei-lhe a comer feijão-jugo** como se não houvesse amanhã, cozinhado pelo Sr. Barril, o cozinheiro das Irmãs, a quem a história passou completamente ao lado e que, portanto, se deu em doido foi por causas inteiramente estranhas a este episódio e declinamos qualquer responsabilidade pelo sucedido. Mas penso que ele por acaso não deu em doido. Só achou um pouco bizarra a minha insistência em comer feijão-jugo todos os dias, mas não fez perguntas...

A bebé, por fim, acabou por ser baptizada com o nome da minha colega, que passou a acreditar em milagres, embora eu lhe jurasse a pés juntos que aquilo que acontecera estava longe ser exótico e tinha bases científicas. O problema é que depois disto fiquei ainda mais convencida de que o realeitamento é possível. E se em Lisboa sou capaz de convencer as mães dos meus meninos de que a coisa resulta (e, efectivamente resulta muitas vezes!), muito mais em África, onde o aleitamento materno representa a única hipótese de sobrevivência das crianças.

Isto tudo para dizer, meus amigos, à laia de conclusão, que consigo ser chata-como-a-potassa no que concerne à problemática do realeitamento materno, que nutro particular interesse pelo fenómeno e que ele resulta muitas vezes.]

Ora, adiante!

(continua)

*Eu sei que no original é bailar e não beijar, não me arreliem... E quanto às amigas, não prescindo delas!
** Feijão-jugo é uma leguminosa africana que tem nome de feijão, cultiva-se como o amendoim, come-se como o tremoço e sabe a grão-de-bico. Dizem que também tem a capacidade de estimular a produção de leite materno.

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