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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

31
Dez10

[outras palavras] na procura de uma resposta...

beijo de mulata


Todos nós andamos a aprender a ser felizes. Acredito que andaremos toda a vida a fazer ensaios e experiências para encontrarmos verdadeiramente a felicidade. Um dia deste, numa das minhas visitas às comunidades, encontrei um ancião que me perguntou: “olhe para este povo como é pobre e feliz, o seu povo também é assim?” eu fiquei a olhar para aquele velho maconde. Não, porque não tivesse entendido a pergunta, mas o porquê de a ter feito a mim, que acabava de chegar àquela aldeia e pouco ou nada ainda tinha visto. Fiquei calado durante bastante tempo, a olhar para tudo e para todos. Depois de alguns minutos, de conversa comigo mesmo, respondi: “por agora não poderei dar uma resposta, talvez no fim da minha visita.” A visita durou três dias.

Alguém me tinha dito na sede da missão, para ter muito cuidado com as minhas respostas, de um modo especial, aos mais velhos das comunidades. Porque são pessoas que se preocupam com a grandeza dos corações que os visitam. Por isso, fazem muitas perguntas e analisam ao pormenor as respostas. Não se pode falar de qualquer maneira. Eles estão fartos de gente que lhes rouba os segredos, como os sociólogos, os antropólogos e os historiadores. Para eles, esses não sabem, nem entendem a sua forma de viver. Só vêm a realidade com a cabeça, sem o coração. Vão muito preocupados, em querer entender tudo, mas não sentem nada. Deixam o coração em casa, dizia um animador zonal, a propósito da pergunta que me tinha sido feita. Certamente, que aquele ancião olhou para mim como um possível ladrão de segredos. Ele queria que eu visse a cor das coisas não por fora, mas por dentro.

Aqui, o pulsar da vida é muito diferente do nosso. Nesta terra vermelha somos convidados a partilhar gestos simples: como um sorriso, um aperto de mão, um parar para escutar o que o outro tem para dizer... realidades que no nosso mundo ocidental já perderam alguma cor e encanto.

A vida deste povo tem muitos segredos. Ela manifesta-se como vêm as coisas; como as sentem; como as usam e apreciam; como vivem o dia-a-dia; como olham para a natureza, para a vida e para a morte; como se relacionam com os outros e com o mundo; como festejam as suas vitórias, nascimentos, derrotas, tristezas e mortes.

Durante aqueles dias, em que fui um deles, observei que ninguém estava triste, apesar de terem muitos motivos, para estarem aborrecidos com a vida. Muita gente, dias antes, tinha perdido familiares, que morreram de malária e de sida. A chuva caiu tão forte que destruiu as sementeiras, o que fazia prever mais fome, mais miséria e mais morte... Nenhum daqueles rostos tinha uma boa casa, uma mesa farta, automóvel na garagem, trabalho certo, ordenado ao fim do mês... mas mesmo assim, eu via nos seus olhos o brilho da vida, a esperança, a alegria de estarem vivos.

Este povo é rico em humanidade, porque sabem olhar sem protectores de luz, sabem comer sem talheres, sabem dançar sem sapatos, sabem falar com os outros que vivem longe sem necessitar de telemóvel, sabem dormir sem a preocupação do que vão vestir e comer no dia seguinte e sabem falar sem dizer palavras...

A sua forma de estar no mundo permite captar, sentir e viver uma felicidade, que os bens não nos permite ver, sentir nem viver. Por isso, observam mais com o coração do que com a cabeça. Acho que o grande segredo deles é esse. Não fazem muitos cálculos sobre o que têm ou o que podem vir a ter. Vivem o presente com intensidade e com muita humanidade.

Cada um vale por aquilo que é e não por aquilo que tem. Talvez essa seja a grande diferença que existe entre os nossos mundos. Estou a ver algumas pessoas, do nosso denominado primeiro mundo, que em humanidade deixam muito a desejar, mas porque têm muito dinheiro, são muitas vezes, apresentadas como modelos a seguir. Afinal a nossa pobreza é outra e a nossa felicidade é muitas vezes aparente.

Durante aqueles três dias em Bilibiza, uma aldeia no norte de Moçambique, vi como este povo sabe angariar tesouros como a gratuidade do encontro, a partilha do pouco que têm, os laços familiares que os unem e a ligação com o sagrado e a natureza. Tudo é misterioso.

Não quero generalizar raciocínios, nem muito menos dizer, que este mundo em que estou, é melhor do que aquele onde nasci. Já deve estar farto de ler e ouvir este tipo de assuntos... não se zangue, estou apenas a conversar consigo...ajudá-lo a pensar e pedir-lhe que responda comigo aquele velho maconde. Quero que olhe para si e para a sua vida e veja se é feliz. Isto tudo, porque ainda não dei uma resposta aquele maconde de 70 anos.

Eu continuo a aprender verdadeiras lições de vida no silêncio dos olhares e no mastigar simples das palavras. O livro da vida escreve-se com gestos de amor e de partilha, porque esses tesouros ficam para sempre nos nossos corações.

Texto do Pe. J. Torres?, Missionário que viveu em Cabo Delgado no meio de Macuas e Macondes e, felizmente, ficou a amá-los como poucos.
28
Dez10

[improbabilidades] das coisas que, decididamente, só me acontecem a mim...

beijo de mulata
Os meus anti-retrovirais...

(continuando e concluindo)

Telefonei ao director do hospital, que foi um querido e, em menos de meia hora, arrancou o farmacêutico da cama e foi ao hospital entregar-me pessoalmente os medicamentos que tinha disponíveis para profilaxia: um esquema triplo, com zidovudina, lamivudina e... efavirenz. Não havia mais nada. Era o melhor que tinha. O esquema mais sofisticado! Anti-retrovirais dentro do prazo de validade (por pouco, mas pronto...), em genérico e made in India. Um autêntico milagre, considerando que há muito poucos anos não era sequer possível encontrar anti-retrovirais em todo o território moçambicano, quanto mais assim do pé para a mão e no meio do mato... Agradeci-lhe a amabilidade e a disponibilidade, desculpei-me pelo incómodo e voltámos para casa.

Já em casa, eu e a R. sentámo-nos a fazer aquilo que qualquer médico abomina que os doentes façam: lemos as bulas de uma ponta à outra para nos inteirarmos das reacções adversas possíveis que a medicação me poderia provocar. E do exame cuidado da literatura inclusa concluímos que a reacção adversa mais provável que eu poderia ter era... uma crise psicótica! Isto, com a agravante de estar já a tomar mefloquina para profilaxia da malária, também ela sobejamente conhecida por conseguir provocar psicoses assim gratuitamente. Valesse-me São Vito se para além da infâmia de vir a ter insónias de meia-noite, ainda fosse desta que havia de dar em doida. 

Acho que nem dei pelo dia seguinte. Passei-o a dormir profundamente, com um sono quase patológico. Só me lembro de acordar de quando em vez com o pensamento absurdamente reconfortante de não estar a ter insónias, contente por ainda não ter dado em doida e com a imagem amorosa da R., que não arredou pé dali o dia inteiro, sentada na minha cama, ao meu lado, a ler um livro e a olhar para mim tentando descortinar uma réstia de sentido no absurdo que estava a acontecer. Tudo isto enquanto tentava acalmar as Irmãs, explicando-lhes que aquilo era tudo normal. Que era normalíssimo eu não acordar há quase 24 horas e que só estava a tomar aqueles medicamentos por excesso de zelo, já que a bem dizer, no fundo, no fundo não havia perigo nenhum...

No dia seguinte o sono já não era nada comigo. Insónias também não. Quanto aos outros efeitos secundários possíveis, as náuseas, vómitos, dores de cabeça, diarreia, crises psicóticas, crises maníacas, depressão, ansiedade, mucosites, icterícia, falência hepática, pedras nos rins e o diabo a quatro (ou a sete, que como sabem um diabo nunca vem só e quatro diabos trazem no mínimo mais três, atrelados, como damas de companhia), nem ao de leve me pegaram! E foi assim que concluí que estava certamente a tomar um placebo. Também, o que é que eu havia de querer de uns pobres anti-retrovirais genéricos made in India adquiridos pela Direcção Distrital da Saúde do Gilé? Mas à cautela lá os fui tomando.

Só comecei a pensar que se calhar os medicamentos afinal talvez não fossem só Farinha Amparo quando uma madrugada acordei a vomitar e percebi, horas depois, que estava com malária: os anti-retrovirais tinham-me certamente baixado os níveis de mefloquina no sangue e portanto tinha deixado de estar protegida. Mas a confirmação de que afinal os anti-retrovirais não eram de contrafacção só a tive em Lisboa quando fiz as análises da praxe: 350 de colesterol, 300 de triglicéridos, função hepática pelas ruas da amargura e... VIH negativo! Decididamente os medicamentos tinham funcionado. Thank you, India!
27
Dez10

[improbabilidades] das coisas que só me acontecem a mim...

beijo de mulata
Uma criança amorosa e sua mãe no hospital do Gilé (Zambézia, Moçambique).
Não são as protagonistas desta história, tal como se vê pelo olhar vivo de ambas e pelo seu bom estado nutricional.


(continuando...)

Ora, como eu ia dizendo no post anterior antes de me ter perdido, certa noite, no hospital do Gilé, na enfermaria de Pediatria, sofri um pequeno incidente. Um incidente tão peculiar e improvável que se tivesse corrido mal talvez até se tornasse num caso clínico para publicar. Mas como tudo acabou em beleza, foi só mais uma aventura moçambicana e uma história para contar...

Nessa noite, como habitual, eu e a R. fomos ao hospital depois de jantar para ver como estavam os meninos e reparámos que havia uma nova criança na enfermaria, de seus 5 ou 6 meses, que tinha sido internada umas horas antes. Motivo de internamento: desnutrição grave. A mãe, que a acompanhava, estava também visivelmente desnutrida e doente e ia contando à R., no meio de tosse e calafrios, que a sua menina estava desnutrida porque ela tinha deixado de ter leite havia três semanas... Arrebitei a orelha! Que ouvira eu de raspão, voltada de costas a observar uma outra criança? Aquela mãe perdera o leite?! Metida em brios, entrei em acção de imediato:

- Mas, mamã, não tem nem uma gota que possa estimular? - perguntei.
- Não, não tem mais leite.
- Mas, mostre, mamã, não tem mesmo nem uma gota? - já vos disse que consigo ser chata-como-a-potassa? Só para confirmar...
- [Com um olhar infinitamente triste] Não...
- [No meu macua macarrónico] Mas olhe, nós podemos dar-lhe um medicamento para fazer o leite voltar. Não tem mesmo nem uma gota? Mostre lá...

Consegui, então, convencer a senhora a fazer a expressão do leite para ver se pelo menos teria "uma gotinha que pudesse estimular" e ela mandou-me, sem cerimónias, um esguicho de leite materno, abundante e certeiro, para o meu olho direito! E, pronto, meus amigos, foi então que compreendi que afinal, neste caso, o problema não era de todo ausência de leite materno. A menina tinha deixado de aumentar de peso porque estava doente e não porque a mãe tivesse perdido o leite!

Fiquei para morrer... Aquela senhora pálida, emagrecida, com feridas na boca e olhos mortiços bradava a quem a olhasse com mais atenção que estava infectada com o vírus da sida. Tinha uma carga viral certamente elevadíssima porque de outro modo a filha não estaria desnutrida e, portanto, juntando dois mais dois, isto queria dizer que eu tinha acabado de levar com um esguicho de leite materno, certeiro e abundante, carregadíssimo de VIH, directamente nos olhos...

A R., que assistira a tudo como que em câmara lenta e previra o acidente fracções de segundos antes, só não me esganou com o estetoscópio porque não calhou... Como pudera eu ser tão loira, tão imprudente, ó valesse-lhe a Santa do Pau Preto, repreendia-me enquanto me lavava os olhos com soro fisiológico e pegava na ficha da criança para confirmar o diagnóstico que literalmente se metia pelos olhos adentro... A ficha da criança confirmava a nossa suspeita: filha de mãe VIH positiva! Terminámos o que tínhamos a fazer e fomos para casa tentando acalmar-nos. Que a probabilidade de contágio era ínfima, que nunca tal se vira, Santo Deus, e então logo com leite materno, haveria coisa mais improvável? É que nem valia a pena pensar mais no assunto...

Mas eu estava com os cabelos em pé... Enfim, vocês já me conhecem. Eu até sou uma optimista por natureza. E sou católica. No fundo, eu estou quase sempre plenamente convencida de que "o meu pai é o dono disto tudo" e portanto nada de mal me pode acontecer, mas daquela vez, talvez pelo adiantado da hora, pelo modo como me dera conta do diagnóstico ou pela sensação de ter sido apanhada desprevenida, não estava descansada... E também sou da opinião de que, apesar de ser filha do dono disto tudo, nunca nos devemos fiar na Virgem sem tentar fugir. E instalou-se a dúvida, deveria ou não fazer profilaxia com anti-retrovirais? Lá peguei no telemóvel e telefonei para Lisboa a uma colega especialista nestes assados, que foi peremptória: era mesmo para fazer terapêutica. Tripla se possível, mas que não tomasse efavirenz porque aquilo dava umas insónias desgraçadas, que me poderiam arruinar o resto da estadia.

E pronto, lá me rendi à evidência de que tinha pouco mais de duas horas para começar profilaxia e teria de procurar arranjar anti-retrovirais, esquema triplo sem efavirenz, dentro do prazo de validade, àquela hora da noite, em que já mais de metade do Gilé estava deitado e a outra metade estaria a pensar que também já iam sendo horas de procurar a horizontal...

(continua)
27
Dez10

[pequenos milagres] a fonte dos amores que jorra do peito

beijo de mulata
Criança e sua mãe na Ilha de Moçambique, Nampula.

Faz agora três meses que uma bela noite, na enfermaria do hospital do Gilé, fui vítima de um pequeno acidente...

E vamos agora dar início a um longo parêntesis, que explica muita coisa sobre este pequeno incidente, é certo, mas que é totalmente desnecessário para a compreensão do essencial da história, portanto se tiverem de ir trabalhar/ dormir/ dançar/ outra-coisa-qualquer-que-honestamente-se-possa-fazer-em-vez-de-ler-este-blog ou se se recusarem a ler um post com este título inacreditavelmente piroso e quiserem passar directamente ao post seguinte, estejam à vontade.

[Meus caros amigos, quem vem aqui ao mato desde a sua fundação, quem já andou a cuscar ali pelas colunas da direita no estórias antigas, saudades loucas [andam amigas a beijar de boca em boca*] e foi parar a um milagre que certa vez aconteceu em Iapala, ou até quem me conhece pessoalmente sabe que sou uma fervorosa entusiasta do aleitamento materno e uma apaixonada, uma deslumbrada pelo realeitamento. Ou bem... pior, muito pior. Quem me conhece melhor sabe que tenho a mania que consigo fazer com que as mães tornem a produzir leite depois de o terem perdido e que levo sempre comigo, na minha bagagem para África, um medicamento que estimula a produção de leite e que anuncio como a última coca-cola no deserto!

Pior... ainda pior: quem me conhece verdadeiramente sabe que em África me recuso a fornecer leite de lata às crianças enquanto não estiver convencida de que o leite não vai voltar. E que já fiz verdadeiras loucuras neste capítulo, tais como como fazer com que uma tia, cujo filho mais novo tinha quatro anos e que já não mamava há dois, voltasse a ter leite para amamentar a sobrinha, uma prematura de 900 gramas que entretanto tinha perdido 200, mas que mamava de olhos abertos e com o vigor de quem se recusa a morrer! Isto porque a mãe da criança estava a morrer de sida e estávamos num local onde não havia água potável para fazer leite artificial para aquela bebé.

Quem assistiu a este último episódio da minha vida em África sabe que ninguém acreditou naquilo ao princípio. Que eu própria duvidei da minha sanidade mental várias vezes (embora nunca o tivesse admitido, era só o que faltava!). Quem lá esteve sabe que, enquanto o leite não voltou, eu ia dando com a tia e com as enfermeiras da maternidade em doidas e que consegui, efectivamente, enlouquecer a colega que estava comigo na altura. Eu própria ia ficando louca e provavelmente nunca recuperei deste estado assim tem-te-não-caias... Ou já estaria antes? No meio daquilo tudo, o que tenho a dizer é que a tia foi uma autêntica heroína e a sobrinha bebé uma lutadora de mão cheia.

Naqueles dias de desgaste e angústia socorri-me de tudo o que me lembrei ou inventei que nos pudesse ajudar: dei-lhe o tal medicamento que vai sempre comigo, mandei chamar o curandeiro mais afamado das redondezas, mandei buscar a D. Catarina - a antiga parteira de Iapala, que entretanto se reformara - e dei-lhe a comer feijão-jugo** como se não houvesse amanhã, cozinhado pelo Sr. Barril, o cozinheiro das Irmãs, a quem a história passou completamente ao lado e que, portanto, se deu em doido foi por causas inteiramente estranhas a este episódio e declinamos qualquer responsabilidade pelo sucedido. Mas penso que ele por acaso não deu em doido. Só achou um pouco bizarra a minha insistência em comer feijão-jugo todos os dias, mas não fez perguntas...

A bebé, por fim, acabou por ser baptizada com o nome da minha colega, que passou a acreditar em milagres, embora eu lhe jurasse a pés juntos que aquilo que acontecera estava longe ser exótico e tinha bases científicas. O problema é que depois disto fiquei ainda mais convencida de que o realeitamento é possível. E se em Lisboa sou capaz de convencer as mães dos meus meninos de que a coisa resulta (e, efectivamente resulta muitas vezes!), muito mais em África, onde o aleitamento materno representa a única hipótese de sobrevivência das crianças.

Isto tudo para dizer, meus amigos, à laia de conclusão, que consigo ser chata-como-a-potassa no que concerne à problemática do realeitamento materno, que nutro particular interesse pelo fenómeno e que ele resulta muitas vezes.]

Ora, adiante!

(continua)

*Eu sei que no original é bailar e não beijar, não me arreliem... E quanto às amigas, não prescindo delas!
** Feijão-jugo é uma leguminosa africana que tem nome de feijão, cultiva-se como o amendoim, come-se como o tremoço e sabe a grão-de-bico. Dizem que também tem a capacidade de estimular a produção de leite materno.
26
Dez10

[as melhores do serviço de urgência] o meu natal dos hospitais

beijo de mulata
Fernando Botero, 1981

Na noite de Natal, estava com a minha equipa de banco no hospital, já a meia-noite se aproximava e nós com mais de três horas de espera e quarenta meninos ainda por ver, e chamo pelo intercomunicador um adolescente cuja ficha de triagem dizia que vinha ao Serviço de Urgência por vómitos "persistentes" desde há... uma hora.

Entra-me, então, pelo gabinete de consulta uma família de obesos. Daquelas que fazem lembrar a história da menina rica: o pai era obeso, a mãe era obesa, a filha era obesa, o jardineiro era obeso, o cozinheiro era obeso... E dizia a mãe:
- Pois, doutora, eu nem queria vir. Eu até disse ao meu marido, é melhor não irmos, que vi na televisão que aquilo nas "orgências" está tudo tão entupido que a gente ainda apanha para lá uma anorexia nervosa!

[E era verdade, meus amigos! Aquilo foi para lá uma salada tão grande, valha-me Santa Rita de Cássia, que nessa noite ninguém jantou uma folhinha de alface sequer... Isto, obviamente, até às tantas da madrugada, altura em que me atraquei às pataniscas de bacalhau e ao pão-de-ló que a D. Teresa - a santa senhora que mantém a minha casa habitável - amorosamente tinha preparado de véspera para a nossa ceia natalícia.]
25
Dez10

[improbabilidades de natal] gémeos

beijo de mulata
Nossa Senhora teve gémeos! "Dupla encarnação de Deus" disseram espantados São José, o burrinho e a vaquinha. (Serão biologicamente monozigóticos?)

Post dedicado à Ana, à Sara, à Catarina e à Marta porque se o Natal tivesse sido assim, a história da religião católica poderia ser hoje ainda mais profunda e rica... Sejam muito felizes! Para a Marta: tenho a certeza de que vai tudo correr bem! Beijinhos.

Foto genial da Malguitcha?...
25
Dez10

[welcome to mozambique] deus é moçambicano!

beijo de mulata
... mas o menino desconseguiu!

(Texto de Francisco Campos, sj)

Já todos percebemos isso há muito tempo. De outro modo, como poderíamos ver nesta terra, que poderia ser um paraíso para todos e ainda não o é, milagres daqueles enormes, que nos permitem sobreviver?

Já Jesus não é moçambicano. Tentou, mas não conseguiu. Mas essa é uma história de há muito, muito tempo:

- Pai!
- Sim, meu Filho?
- Quero encarnar moçambicano.
- Isshhh[1]!! A doidice entrou donde nessa cabeça?
- Falo a sério, Pai. Quero nascer em Moçambique.
- ‘Cê, ‘cê!! Estás-me a dificultar!... Como pode?... Moçambicano??... Nada!!
- Sim, moçambicano. Que outro sítio poderia eu escolher?
- Actualiza-me[2] lá das tuas razões.
- Há sítio na terra mais perfeito para um presépio? Não há!
- Como quer, você? Os Reis Magos vão desconsiguir encontrá-lo lá! É muito grande aí! Nem com grande estrela!

Aparece, entretanto, o Espírito Santo com preocupações mais pragmáticas por causa da época que se avizinha.

- Bom dia!
- Bom dia, bom dia, obrigado! Da minha parte está tudo bem. E você aí do seu lado?
- Tudo bem. Vinha saber se posso fazer uma máquina de roupa.
- O quê??
- Posso fazer uma máquina de roupa com os paninhos que o Menino vai usar?
- E como se faz?
- Bom...
- Você sabe?
- Acho que sim...
- Então estou a pidir fazer uma máquina, que tenho aqui outros problema.
- Até já, então.
- Está bem.

A atenção virou-se de novo para Jesus:

- Xii Jesus... Está mal!... Moçambique? Eu já sou moçambicano. Não pode todos ser moçambicanos.
- Mas já foram pensadas outras possibilidades?
- Ainda. Mas essa está desquestionada.
- E a pressa? Temos de ser rápidos!
- Afinal? Que dia é?
- Será 25 de Dezembro, como combinámos.
- Issch! Não é? Assim não anima! Preciso de tempo p’ra pensar nisso.
- Na eternidade não há isso do tempo.
- Não é? Maningue nice[3] essa invenção!
- Sim... Mas Moçambique poderia ser considerada ainda uma última vez antes da decisão final...
- Não. Moçambique já tem muitos presépios perdidos.

E é verdade.

Muitos meninos e meninas nascem todos os dias em Moçambique sem nada, embrulhados na capulana[4] suja que servia de saia da sua mãe, com fome, calor, esquecidos por todos e sem uma estrela que guie alguém até si.

Parece que é um Natal que se repete ingloriamente[5], todos os dias e ninguém dá por ele. Mesmo que o bebé chore com todos os seus pulmões. Mesmo que a mãe chore por não ter nada para lhe dar. Mesmo até, que seja dia 25 de Dezembro.

Só se dá pelo calor, pelo suor que teima em correr pelos corpos em diamânticas gotas preciosas que jorram da vida e a salgam. É esse o último esforço e reduto do esplendor do Céu que encarna na terra.

E por isso é Natal em Moçambique. Porque estes “Jesuses” são profundamente amados pelo Pai, nosso Deus, que afinal também é moçambicano. Desejo um Feliz Natal, cheio desta experiência de sermos filhos muito amados pelo Pai, mesmo que por vezes não nos chamemos Jesus, ou sejamos moçambicanos.

[1] Grito de dor, indignação, típico destas bandas.
[2] Informa-me, fala-me.
[3] Muito boa.
[4] Panos típicos mais ou menos coloridos, mas sempre com um padrão, utilizados para tudo o que for preciso, desde roupa, a porta-bebés nas costas, panos de limpeza,...
[5] Não se ouve Gloria in excelsis Deo em quase parte nenhuma.
24
Dez10

[vozes brancas* #34] santa claus ou santa ingenuidade...

beijo de mulata
No Serviço de Urgência, nos momentos em que temos de entreter crianças que não conhecemos enquanto lhe espreitamos para dentro dos ouvidos à procura de Noddys e Bobs-o-Construtor imaginários e enquanto lhes palpamos as barrigas, a conversa de circunstância (vulgo conversa de elevador, vulgo conversa de chacha) gira habitualmente em torno dos mesmos assuntos, os nomes das educadoras, os namorados, os melhores amigos... Felizmente, nos últimos dias pudemos variar de assunto e falou-se animadamente sobre presentes, pedidos especiais ao Pai Natal e a tão aguardada vinda do senhor das barbas.

Ontem, uma amiga minha ia sempre perguntando a cada criança:
- E então, pediste muitos presentes ao Pai Natal?
Todos iam mais ou menos respondendo que sim, que tinham pedido muita coisa, que tinham pedido isto e mais aquilo, até que, lá para as três da madrugada veio uma menina de quatro anos, deliciosa, que respondeu que tinha pedido apenas um presente.
- Só um?! E o que foi que tu pediste?
- Pedi o Nenuco cabeleireiro.
- Olha, mas sabes, o Pai Natal pode não encontrar aquilo que tu lhe pediste...
- Encontra sim! Até há no Continente!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

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