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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

14
Nov10

[voluntariado em moçambique] o mukulukhana

beijo de mulata
Bicicleta, a minha fortuna....
(Gurué, Zambézia)


(continuação deste post)

O nosso amigo ficou como voluntário na Missão de Murrupula durante dois anos e, nesse tempo, emagreceu, apanhou malárias atrás de malárias, maleitas atrás de maleitas, apanhou até matacanha (tungíase, para os médicos e curiosos da Medicina em geral) porque se recusava a andar de sapatos fechados quando o povo andava tantas vezes descalço, deixou crescer a barba, aprendeu a falar macua, quase que se tornou africano. Aprendeu a fazer de tudo um pouco. Fez de tudo um pouco. Dedicou-se a todos os que lhe pediram ajuda. E dedicou-se, sobretudo, ao tratamento da lepra no distrito. E sim, há lepra em Nampula! E há ainda muita lepra em Moçambique, embora o governo não o admita...

O método base de trabalho era o mesmo que o nosso: formou activistas locais em todo o distrito para falarem sobre a lepra às pessoas. Os activistas faziam palestras nas igrejas, nos mercados, nas mesquitas, nas reuniões dos régulos das aldeias. Eram 35 os voluntários escolhidos a dedo, todos pessoas respeitadas nas aldeias, que se comprometeram com a missão de fazer passar publicamente duas mensagens simples e básicas sobre a doença: que a lepra tem cura e que se for tratada a tempo não traz complicações. Alguns eram também socorristas nas aldeias, outros filhos ou familiares de leprosos, que tinham visto a família sofrer com a discriminação e o estigma da doença. Como contrapartida... oferecia-lhes uma bicicleta. E, meus amigos, não sorriam. Quem já lá esteve sabe que, no mato em Moçambique, quem tem uma bicicleta é um homem rico. Quem tem uma bicicleta pode transportar fardos pesados, deslocar-se para ir comprar os bens de primeira necessidade que não existem nas aldeias, levar a família ao hospital numa emergência, ir vender os produtos do cultivo das terras ao mercado... Uma bicicleta é um bem precioso!

Os activistas locais tinham também a missão de marcar uma data e um local onde as pessoas que tivessem sinais de lepra pudessem comparecer para serem observadas por ele e pelo enfermeiro Rajá, responsável pelo Programa de Combate à Lepra. Eram estas "concentrações" de doentes de lepra que ocupavam a maior parte dos dias do nosso amigo e que o faziam desdobrar-se com uma imaginação surpreendente.

Para anunciar as concentrações teve a ideia de ajudar a promover o projecto de rádio local que se estava a iniciar e pagava para que, três vezes por dia, as datas e locais fossem publicitados, juntamente com as frases-chave da mensagem dos voluntários.

E foi assim que o nosso amigo se tornou no primeiro mecenas da Murrupula FM. Só que os locutores achavam que as frases eram assim... eeer... como poderiam dizê-lo sem ofender o "patrão"? Sensaboronas... Não tinham sal. Não tinham música. Não ficavam no ouvido por mais que as tentassem dizer de forma enfática... Aliás, os macuas são conhecidos, entre outras coisas, pela sua sensibilidade musical e pelos seus dotes vocais. E aquelas palavras feriam-nos. Mas abraçaram o projecto, agarraram a mensagem e, ao terceiro dia, os locutores já tinham, espontaneamente, alterado a estrutura das frases, dando-lhes uma cor mais africana, tinham pegado na música das palavras e cantavam-nas alegremente. Na segunda semana já tinham inventado uma segunda voz, que acrescentava à música uma profundidade e uma intensidade diferentes. E daí até introduzirem o som dos batuques e o alarido das mulheres foi um pulinho, que acabou por dar à música um ar festivo, anunciando as concentrações como autênticos eventos populares! O resultado foi um autêntico hit que andava na boca de toda a gente. A lepra passou a ser assunto de conversa e palavra repetida e cantada, quando antes era apenas motivo de nojo, tabu e ostracismo!

(continua)

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