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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

30
Out10

[as melhores do serviço de urgência] esta urgência dava um filme cigano

beijo de mulata
Há alguns anos atrás, numa cálida noite de verão, estavam três colegas meus, ainda alunos do último ano de Medicina na sala de pequena cirurgia do São José - essa grandiosa urgência de Lisboa - quando entra um jovem cigano trazido de maca após ter sido esfaqueado num ombro, com a roupa cheia de sangue e inconsciente. Era o terceiro doente esfaqueado nessa noite numa esquina do Martim Moniz pelo mesmo assaltante, que entretanto só acabou por ser preso de madrugada...

Enquanto um deles ia chamar os colegas mais velhos que estavam noutra sala a tratar dos primeiros esfaqueados da noite, os outros dois colegas e o enfermeiro de serviço apressaram-se a calçar umas luvas e socorrer o doente. Ora acontece que, há alguns anos atrás, os meus colegas eram alguns anos mais novos (mais uma vez este blog presta homenagem aos jovens soldados foliões que imortalizaram o Marquês de la Palice) e consta que o enfermeiro que estava de serviço era igualmente alguns anos mais jovem e também bastante novinho...

Foi aí que começou o grande aperto: o doente vinha inconsciente e a sangrar activamente do ombro e os meus colegas, tal como mandam os bons preceitos do suporte de vida, em vez de tentarem estancar a hemorragia começaram a avaliar os sinais vitais enquanto o enfermeiro, absolutamente ignorado, os olhava, parado, à espera de instruções:

Colega 1 [posicionando a via aérea] - Vê lá se respira...
Cinco segundos depois:
Colega 2 - Acho que não... [Olhando anelante para a porta, à espera de ver aparecer a qualquer momento os colegas mais velhos e palpando o pescoço em busca do pulso carotídeo... a aflição crescendo cada vez mais...] ...e também não tem pulso. Está em paragem!
Colega 1 - Dá-lhe um murro no peito. Temos de começar massagem cardíaca!

Nisto o doente, muito a custo, abre um olho, tenta levantar o pescoço e diz em voz arrastada mas muito indignado:
- Eh, lá... ê só tou bêbado!
29
Out10

[as melhores do serviço de urgência] reanimações falhadas

beijo de mulata
Como já vos tenho contado em diversos números anteriores, o Hospital de Curry Cabral foi o primeiro hospital onde trabalhei e de que guardo memórias fantásticas. Uma das quais é a sensação de ter de morder o lábio inferior para não sorrir quando os familiares dos doentes utilizavam a expressão "ir ao Rego*" como se fosse a coisa mais normal do mundo...

Outra das imagens que me ficaram para sempre aconteceu em certa noite de verão, uma noite já bem entrada na madrugada... estava eu de banco no SO - que era assim uma espécie de unidade de cuidados intensivos, mas com porta para a rua e de acesso quase directo - calmamente a transcrever umas análises, quando de repente, na sala contígua, oiço um bip longo de um alarme de um monitor, seguido de um ruído de arrastar de camas. Levantei-me de imediato para ir acudir à situação de perigo que se me desenhava na mente: uma paragem cardíaca e um enfermeiro zeloso que se precipitara para a cama do doente para iniciar manobras de reanimação, mas que inexplicavelmente não tinha gritado por ajuda. Ainda nem tinha chegado à porta quando oiço um berro abafado de um homem, seguido de um ruído de luta corpo a corpo e um estrondo enorme. Entro na sala e, incrédula, vejo um dos doentes que estava internado com um enfarte agudo do miocárdio, de pijama na cama do doente do lado, com este a debater-se furiosamente para o atirar da sua cama abaixo e vários objectos da mesa de cabeceira e os suportes dos soros a serem atirados ao chão no meio da inusitada batalha campal que se instalara na pacata enfermaria... Já os cateteres saltavam das veias, com soros, medicação e sangue derramados, quando os enfermeiro acorreram para os separar e restabelecer a ordem pública...

Levou-me algum tempo a perceber que raio é que se tinha passado... Ora o doente com um enfarte agudo do miocárdio que saltara da cama para cima do doente do lado não estava com uma crise psicótica nem possuído por um desejo mórbido e louco, mas era antes cardiologista. Pois... isso mesmo! Foi essa a explicação que ele me deu de imediato quando perguntei, furiosa, o que é que se passava ali...

Explicou-me que estava a dormir tranquilamente quando, de súbito, despertou com o bip longo do monitor do doente do lado, olhou para o traçado electrocardiográfico do monitor e viu uma linha direita contínua e o doente parado. Com o raciocínio levemente toldado pelo sono, pelos tranquilizantes que lhe tinham dado e pela sensação de morte iminente que vivera horas antes, concluiu de imediato que se tratava de uma paragem cardíaca e decidiu iniciar reanimação cardio-respiratória. A versão do vizinho do lado era ligeiramente diferente... O vizinho do lado, por seu lado, que não estava em paragem cardio-respiratória coisa nenhuma, apenas desligara inadvertidamente um fio do monitor quando se tinha virado enquanto dormia, tinha acordado espavorido com um homem em pijama a dar-lhe murros no peito quase a ponto de lhe partir as costelas e a soprar-lhe pela boca adentro (sim, na altura a respiração boca-a-boca ainda fazia parte do suporte básico de vida)... Obviamente que se tinha tentado defender com unhas e dentes do homem que o estava a assediar!

De onde se conclui que até para sobreviver a um internamento é preciso ter sorte, vizinhos simpáticos e sentido de humor...

*Rego = Hospital de Curry Cabral
28
Out10

[as melhores do serviço de urgência] ouvidas por amigos

beijo de mulata
- Ele até veio de ambulância para Lisboa em estado cómico... (... mas se calhar até foi divertido, não?)
- O meu marido é especialista em cuidados paleolíticos! (... o que será isso? Cuidados paliativos para idosos?)
- Ele não fez nada, mas apanhou à mesma três dias de prisão perpétua... (... coitadinho, nunca mais passava o tempo...)
- Estava com uma tosse seca e irritadiça. (...eeer... a tosse ou a menina?)
- Puseram-na a dormir para fazer uma sornância. (Ai eu, se me deixassem, também estava agora a fazer uma sornância... e de preferência a dormir...)
26
Out10

[vozes brancas* #28] afilhados à distância

beijo de mulata
Este ano, um dos pedidos que levava quando cheguei a Nampula era o de procurar a afilhada à distância de uma amiga minha para falar com ela, conhecê-la, ver como estava e se precisava de alguma coisa e, por fim, tirar uma fotografia com ela. Pedi às Irmãs que organizam este apadrinhamento à distância para mandar chamar a menina. Só sabia que se chamava Remissa, que tinha 7 anos e morava no bairro de Muahivire, mas isso bastava (nem me ocorreu saber mais do que isso). Ela apareceu, dias depois, acompanhada pela irmã mais nova pela mãe, que me contou que a pequena Remissa tinha ficado muito entusiasmada:
- Mãe, a minha madrinha está a chamar! Quero viajar!

E lá lhe expliquei:
- Não, a tua madrinha não te quer levar daqui, não te quer longe da tua família, mas se quiseres estudar e até mesmo ir para a faculdade, ela vai-te ajudar...

Chega a ser comovente perceber o carinho destas crianças pelas madrinhas e padrinhos que nunca viram mas que entendem que é em parte graças a eles que podem ter uma oportunidade de continuar os estudos e sair de um ciclo de pobreza...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
26
Out10

[vozes brancas* #27] a vida é simples, dizem eles

beijo de mulata
Há alguns meses, estava um bebé internado com uma doença muito grave no meu hospital e as irmãs mais velhas pediam insistentemente à mãe para o ir visitar porque tinham muitas saudades. Ao que a mãe respondia que não podia ser, porque o hospital estava "cheio de bichos" que lhes podiam fazer mal. Dias depois, a filha de 4 anos e meio perguntou-lhe:
- Ó Mãe, por que é que não compra um mata-moscas para matar os bichos do quarto do mano? Assim já podíamos ir vê-lo...

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.

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