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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

22
Jul10

[as melhores do serviço de urgência] a minha vida dava um filme cigano

beijo de mulata
Serviço de Urgência, mãe com bebé ranhosíssimo, a transbordar de secreções arejadas por todos os orifícios respiratórios. E uma pediatra condoída com o resfolegar aflito, quase equídeo, de uma criança tão pequena.

- Bem, então vai dar-lhe uma colher de café deste xarope, duas vezes por dia nos próximos cinco dias.
- Ah... uma colher de café?
- Sim, duas vezes por dia. Mas não lhe pode dar mais do que cinco dias...
- Não mais do que cinco dias, está bem.
- Vai tudo escrito na receita. Alguém sabe ler bem lá em casa?
- O meu marido sabe. Obrigada.

A senhora faz menção de voltar costas, mas de repente, com um ar de quem se lembra de qualquer coisa, volta para trás:

- Doutora, disse uma colher de café...
- Exactamente, uma colher pequenina.
- Pode ser Nescafé?
22
Jul10

[et in iapala ego] um mato de histórias

beijo de mulata

(Continuando este mato de histórias...)

À uma da tarde, quando já o sono começava a levantar, a Irmã Lurdes veio arrancar-me da secretária para ir almoçar, sem admitir réplicas ou alegações de trabalho por fazer. Que fosse rápido que tínhamos visitas para o almoço: três padres que seguiam caminho de Lichinga para o litoral. Passavam pela missão porque tinham dado boleia a uma criança doente e respectiva família, recolhidas à beira da estrada a cerca de 40 km da missão e vinham deixá-las no hospital. Obviamente os padres tinham sido convidados para o almoço. Lá segui também para a mesa depois de me certificar de que a criança não tinha nada de urgente, para não fazer má figura entre os visitantes: um padre moçambicano, um mexicano e um brasileiro simpatiquíssimo que ficou sentado a meu lado na mesa do almoço e que ironicamente me pediu um anti-histamínico porque há já três dias que não conseguia dormir, acometido como estava de uma "cólera nasal", como ele dizia, de tal forma intensa que já começava a temer desidratar pelo nariz (sic)! De bom grado lhe ofereci o que restava do culpado pela minha manhã sonolenta.

A conversa do almoço correu célere sobre a refeição deliciosa preparada pelo cozinheiro, que para cozinhar com coco fresco tinha subido ao coqueiro vizinho do meu quarto (o mesmo que interpretava para mim todas as manhãs os sons da chuva). Falaram-nos também sobre as suas preocupações com as eleições já próximas e os confrontos ocorridos recentemente em Inhaminga entre militantes da Renamo e da Frelimo. Felizmente ao que sabiam sem grandes consequências, embora neste país seja muito difícil obter informações fidedignas, não distorcidas pela máquina de propaganda do governo, de forma que a informação passa muitas vezes de boca em boca, também ela provavelmente muito alterada... Aliás estes governantes também fazem parte da minha lista e, se me perdoam os instintos assassinos, tenho a certeza de que serão os primeiros a ir pela janela quando vier a revolução!

Há tanta coisa neste país que me encanta e tanta coisa que me horroriza, tanta coisa para mudar e tanta perigosamente ameaçada...

O cozinheiro entra no fim do almoço e explica que tentou fazer café com o café de Iapala, mas “desconseguiu de pilar o café a tempo", por isso terá de fazer Nescafé®. Está bem, não há problema, respondemos.

(Desconseguiu... lindo!... É mais um neologismo bem à africana. Isto de falar Português é difícil e a responsabilidade de falar uma língua conservadora, com palavras altivas e centenárias, é entregue a um povo quase todo ele analfabeto. "O povo que se desenrasque!", dizem os governantes. E o povo desenrasca-se, ou vai-se desenrascando... À boa maneira moçambicana, com neologismos deliciosos em catadupa que, pé ante pé, já vão conquistando lugar nas novas edições dos dicionários... E poderia abrir agora um longo parêntesis sobre a língua e a cultura macuas e desafiar o leitor a reflectir sobre que sentido tem a língua portuguesa ser a língua oficial e obrigatória em todas as circunstâncias, desde os curricula escolares até às consultas em centros de saúde rurais, de forma que, por exemplo, quando entram para a escola, as crianças têm de aprender a ler e a escrever numa língua que para elas é estrangeira… mas enfim, isto é apenas um blog. E um blog com modestas pretensões...)

Os padres riram a bandeiras despregadas das últimas histórias da missão e, bem dispostos, despediram-se pouco depois, agradecendo o almoço, pois a tarde já ia adiantada e ainda tinham muita estrada em mau estado pela frente.

Quanto a mim, estou feliz porque consegui sobreviver a esta manhã: ao anti-histamínico, à ausência de mefloquina, à falta de energia, à água fria, a não ter telemóvel, nem rede, nem os doentes nas respectivas camas, à Amélia, meu inseticida natural, à fila interminável no serviço de urgência, ao choque de ainda existir lepra nesta terra, à burka, ao horror da SIDA e de outras doenças que não tenho maneira de tratar, à notícia dos confrontos armados e a tudo o mais. Mas sei que não vou resistir por muito mais tempo a este sono, que pouco a pouco transformou as minhas pálpebras mal dormidas em dois menires. Felizmente chegou a hora da sesta e, aqui na Missão de Iapala, a sesta é felizmente uma Instituição. Não tão assumida, escrita, descrita e programada como a Siesta de nuestros hermanos, mas religiosamente cumprida com jurisprudência, como a Constituição Britânica. E não serei eu a traidora da pátria, violando os seus bons e saudáveis costumes. Até porque todos sabemos o que é que acontece aos traidores da pátria, como o Miguel de Vasconcelos. E para quem não sabe quem foi Miguel de Vasconcelos eu explico: foi um traidor da pátria em tempos idos, quando Portugal estava anexado a nuestros hermanos e que ficou conhecido por ter sido o primeiro a ir pela janela quando veio a revolução! E lá regresso ao meu quarto, abençoando a minha cama coberta de capulanas verdes. Duas horinhas bem dormidas e fico fina para regressar ao serviço de urgência...

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