Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

18
Jul10

[mala de viagem] ideias brilhantes

beijo de mulata
Estive aqui a magicar com os meus botões (expressão meramente coloquial, que a minha camisa de noite não tem botões... e sim, eu sei, já passa das duas da tarde, mas só acordei há bocadinho... ah, que bem que se está na cama!). Estava a tentar pensar num modo de me chamarem do hospital durante a noite quando estiver na Zambézia porque lá geralmente não há rede para nos poderem chamar pelo telemóvel e soltamos os cães durante a noite para ninguém poder entrar no recinto da casa...

Mas acho que já encontrei uma solução eficaz e genuinamente africana: estou seriamente a pensar em levar uma vuvuzela! Por acaso alguém tem uma que me possa dar? Daquelas que façam mesmo uma barulheira infernal capaz de me acordar de um sono profundo com vontade de ir ao hospital esganar quem está a fazer aquele barulho e, de caminho, salvar uma vida? E fica desde já a promessa de que, possivelmente pela primeira vez desde o início do mundial, uma vuvuzela made in china será utilizada para fins humanitários...
18
Jul10

[et in iapala ego] o dia vai avançando

beijo de mulata


(Continuando o dia na Urgência em Iapala. É melhor pôr o link, não é? Daqui a nada já ninguém se entende neste mato de histórias entrecortadas...)

– Que doença tem a senhora?
– Tem lepra, doutora...
– Lepra?!

(Mas existe lepra nesta zona?! Uma vergonha estranha invade-me de rompante, assim como uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor...)

– Qual é o medicamento que lhe está a fazer reacção?
– Rifampicina.

Felizmente é um medicamento que conheço bem e pude responder à questão... Mas uma angústia estranha permanece... Não que seja vergonha não conhecer uma doença que é rara no meu país, mas era como se tivesse acabado de vislumbrar um mundo diferente... Lepra?! Qualquer coisa de irracional pulsa dentro de mim e me grita, contra a minha vontade, que algo de muito grave se passa em meu redor... Mas por que será que tenho esta impressão?, pergunto-me... Por que é que, por exemplo, o meu primeiro caso de malária não me fez sentir assim? Será possível que esteja, depois de não sei quantos anos a estudar Medicina, a cair num preconceito veiculado pelo Antigo Testamento? E logo eu, que até achava que tinha uma mente aberta?

Mas, lepra?! Ainda não estou em mim... Esta senhora tinha uma úlcera num pé, mas estava em fase adiantada de cicatrização. Não tinha deformidades visíveis, não tinha amputações de dedos, em suma, não tinha nada que saltasse à vista de um leigo (e como eu sou leiga...) que tinha lepra. Mas não se entrosava com as outras pessoas. Veio só e regressou só. Cobria a cabeça com um véu, não com a graça e vivacidade das mulheres Macuas, mas como uma autêntica burka... Terá sido excluída da sociedade, ou terá sido ela, com a consciência da doença, que se auto-excluiu? Mas se a Lepra tem cura (e ela sabe que a Lepra tem cura, senão não se estaria a tratar e a sujeitar-se às reacções adversas dos medicamentos) por que será que se comporta desta forma? De onde lhe virá a consciência da doença...? De onde virá o estigma, o peso que a faz vergar os olhos? Mas talvez até perceba o que se passa. Talvez tenha reconhecido no olhar desta doente a opressão que via há bastantes anos atrás aos doente com SIDA, antes de os anti-retrovirais terem revolucionado (e, em parte, desdramatizado) a epidemia na Europa... Não se entende... Uma doença tão simples... Muito mais mortífera é a Malária – o Levítico que o diga – e não faz este abalo na vida social! Mas... Lepra? Será possível? E mesmo por baixo do meu nariz!

(Uma menina à minha frente capta a minha atenção... Sim, logo à noite hei-de estudar a doença, agora há que trabalhar...)

Fico rendida a estas crianças quando alguma me sorri. É tão raro não terem medo de mim... Que pensarão elas desta mucunha, como eles aqui chamam aos brancos? Uma mulher sem cor de pessoa que lhes avança a mão para a face e lhes descobre as pálpebras, num gesto mais ou menos aflito consoante a palidez que ostentam. "Nsina nawo mwana?", pergunto. (Como se chama a criança?) E nestes dias já vi desfilar diante de mim, pintadas de preto e em ponto pequeno quase todas as personagens do Antigo Testamento, Ananias, Malaquias, Levítico, Judite, Ozias... Outras têm nomes próprios como Trinta, Malária, Quietinha, Castelo, Apressado, Médico, Fresquinha, que me fazem sorrir. Há certos nomes que nos entreabrem intimidades distantes e nos permitem, deliciosamente, penetrar em qualquer coisa de interdito nas fantasias e sonhos alheios... Vai avançando o cortejo pelo pátio a passo de caracol. É difícil trabalhar com este sono espesso.

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub