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Jul10
[et in iapala ego] na urgência
beijo de mulata
Na sala de urgência dizem-me que a técnica de Saúde Materno-Infantil foi passar o fim-de-semana a Nampula e "desconseguiu de chegar a tempo". Vou ter de ser eu a fazer a consulta de urgência da Pediatria, mas o edifício onde funciona o atendimento às crianças é tão escuro que peço para me transferirem a secretária para o pátio interior do hospital. Que falta que nos faz a energia...
Começa a chegar a procissão do paludismo... cada mulher carregando devotamente o seu andor anémico e febril enfaixado contra o corpo com capulanas coloridas. Vêm bichar quinino e cloroquina, como bichavam milho nos tempos da guerra... E ainda para mais, a palavra Macua para "medicamento" ou "comprimido" é, salvo melhor transcrição, kininu, delicioso equívoco que me custou meses a desvendar.
Mas, para meu desespero, esta manhã, em vez da mefloquina para profilaxia da malária, tomei por engano o anti-histamínico que tinha destinado para me adormecer e embalar na viagem de regresso e me fazer esquecer as saudades deste povo fantástico. Malditas embalagens que me tornam tudo igual na miopia das madrugadas! E o pior de tudo é que só dei por isso a meio da manhã quando comecei a perceber que não podia culpar o café de Iapala pelo sono que sentia. Mais aromático que qualquer Arábica, curto, conciso, contundente, contava com ele para me sacudir a modorra da manhã, mas... tarde demais, não tinha ido a tempo.
E o cortejo das febres, interminável, estende-se já até ao fundo do pátio sem parar de crescer. Malária, malária, malária, anemia, desnutrição, queimaduras, pneumonias, pielonefrites, bilharziose – endémica na província – uma suspeita de doença celíaca, epilepsia e, claro, a SIDA de que suspeito constantemente, embora não possa fazer testes confirmatórios nem tenha anti-retrovirais. É o que mais me dói não poder tratar nestas crianças. E pensar que, pelo menos nelas, a doença se poderia prevenir de modo tão simples... Mas não posso pensar nisso. Tenho de tratar só o que vejo e o melhor que souber. A cólera, felizmente, não anda por estas paragens nesta altura do ano e o sarampo é já praticamente desconhecido graças aos empenho das Irmãs nas campanhas de vacinação. Valha-nos isso, que com este grau desnutrição o sarampo teria 50% de mortalidade...
De súbito, o Director do Centro de Saúde vem pedir-me conselho sobre como gerir uma reacção adversa que uma doente está a ter a um medicamento. Vem acompanhado de uma senhora de olhos tristes.
– Que doença tem a senhora?
– Tem lepra, doutora...
– Lepra?!
(Mas existe lepra nesta zona?! Uma vergonha estranha invade-me de rompante, assim como uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor... Lepra, valha-me Deus?)