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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

05
Mai10

[yes you can!] das coisas que me irritam

beijo de mulata
Nao haver acentos nem cedilhas nos teclados.

Estar supostamente num excelente hotel a dormir a sono solto depois de uma noite fantastica e ter o quarto invadido de hora a hora por uma senhora da limpeza que insiste em nos fazer a cama e mudar as toalhas as 11 da madrugada.

Ja estar arranjada para sair e so entao receber um telefonema da dita senhora da limpeza, a perguntar inocentemente (depois de ter levado com um berro da ultima vez que me entrou pelo quarto adentro para tentar mudar as toalhas): "Good morning, can I clean the room?".

Responder "Yes you can!" com um sorriso aberto, quando o que me apetecia era ensinar-lhe as regras minimas de como ser civilizado. E nao necessariamente medindo as palavras... Nice people!
02
Mai10

[diferenças] não poder crescer para ser mulher

beijo de mulata

Na minha chegada ao Gilé (Zambézia) em 2008, já veterana nestas andanças do voluntariado, encontrei, no meio das meninas que viviam com as Irmãs e que dançavam para me receber, uma que de raspão me fez reparar nela porque tinha uma face que me pareceu estranha. Uma face estranha mas ao mesmo tempo estranhamente familiar... (os cinzentões da Pediatria chamar-lhe-iam facies sindromática, mas eu não costumo ter dessas pretensões, muito menos no meio da savana, portanto não lhe chamei nada. De qualquer modo naquele momento estava demasiado ocupada a derreter-me toda e a babar-me com as danças e cânticos de boas-vindas e a surpreender-me com o alarido e a algazarra que trinta adolescentes conseguem fazer e a cumprimentar as meninas que já me conheciam do ano anterior e que insistiam em vir dar-me um beijinho...). Ficou-me apenas uma estranha sensação nas traseiras da mente.

Nessa tarde, depois de me instalar na casa das Irmãs, fui dar um passeio de reconhecimento e a Irmã Lurdes, a minha mamã africana, pediu a duas meninas para me fazerem companhia (não fosse eu perder-me... sim, eu confesso, em qualquer sítio por onde passe a minha quase completa ausência de sentido de orientação torna-se uma lenda... eu não devo ter um pingo de androgénios no cérebro, valha-me S. Cristóvão!).

Uma das meninas que me acompanhou era a mesma que me tinha chamado a atenção à chegada e, à segunda vez que olhei melhor para ela, percebi o que ela tinha de especial: um pescoço largo com uma espécie de "asas", um tronco largo e uma face um pouco grosseira. Olhei para o peito dela e percebi a ausência de volume sob a blusa. Tinha Síndrome de Turner, de certeza. Era de livro.

Aproveitei para meter conversa:
- Como te chamas?
- Artemisa, tia P.
- Que nome tão bonito. É o nome de uma planta de onde se extrai um remédio contra a malária, sabias?
- Sabia, sim, as Irmãs já me tinham dito.
- E em que classe estás na escola?
- Estou na décima primeira.
- Ah, muito bem. E quantos anos tens?
- Tenho vinte.
- Olha... e diz-me uma coisa, já és menstruada?
- Não, tia P. - o seu olhar, subitamente infeliz, fez-me perceber a minha horrível falta de tacto - Ainda não...

Calei-me durante um bocado e tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela ainda não era mulher. E enquanto prosseguia animadamente a conversa sobre o dia-a-dia na escola, fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquela jovem.

Para qualquer adolescente ocidental um atraso no início menstruação pode ser muito perturbador, mas em África, isso implica um total aniquilamento social! Não sendo menstruada não poderia participar no ritual de iniciação e, portanto, nunca viria a tomar parte em cerimónias tradicionais, em festas de adultos, não poderia assistir a ritos fúnebres - os mais importantes ritos das sociedades africanas - seria sempre tratada por todos como uma criança. E escusado será dizer que não se poderia casar e muito menos ter filhos ou adoptá-los porque nenhum homem aceitaria como esposa uma mulher que não tivesse cumprido a iniciação. E a única condição que confere estatuto social a uma mulher africana é a maternidade. Sem apelo nem agravo esta menina estava condenada a ser infeliz...

No dia seguinte, depois de regressar do hospital sentei-me na varanda e, pelo canto do olho vi a Artemisa respirar fundo, como que a ganhar coragem para se aproximar.

- Tia P., posso conversar consigo?
- Sim, claro, com muito gosto.
- A tia P. ontem perguntou-me se eu já era menstruada. Como foi que adivinhou?
(Engoli em seco... ela tinha ido direita ao assunto...)
- Bem, eu sou médica, como tu sabes... Ontem reparei que ainda não tinhas o peito desenvolvido...
- Sim, mas não foi só isso. Podia ter só o peito pequeno e estava com uma blusa larga.
- Bem, sim, tens razão...

(Mas como é que eu poderia explicar, assim de chofre, a uma menina, nascida e criada no meio do mato, numa sociedade cheia de ritos, crenças e tabus que ela tinha uma doença genética?)

- Mas, tia P., a tia P. sabe por que é que eu ainda não sou mulher? Isto é feitiço ou é doença? Todas as pessoas me dizem que não sou mulher porque o meu pai se casou com uma esposa que não era Macua e por isso eu agora tenho uma doença tradicional... Ou então que é feitiço...

(Estava impressionada com a forma directa com que ela abordava um assunto que certamente a oprimia, lhe quebrava a auto-estima e a haveria de impedir de ser feliz. Ela devia ser uma mulher de armas! E parecia ter as ideias claras. Pelo menos tinha crítica sobre as crenças tradicionais...)

- Ao certo não sei, mas posso ter uma ideia, Artemisa...

Lá me enchi de coragem para explicar, da maneira mais simples e leve possível, os fundamentos da doença. Surpreendeu-me ao reconhecer de imediato os conceitos de "cromossomas" e "genes" percebendo perfeitamente o que eu lhe estava a querer transmitir. Mas a surpresa maior ainda estava para vir:
- Pois, tia P., no ano passado, na décima classe, aprendemos as doenças dos cromossomas e eu depois de estudar pensei que podia ter a Síndrome de "Túrner", mas não tinha quem me confirmasse...

Não podia acreditar... Uma jovem, nascida e criada no meio do mato, numa povoação em que o analfabetismo quase atinge os três dígitos, tinha feito o diagnóstico a si própria de uma doença genética! Os tempos vão mudar, Moçambique!

Todas as histórias têm um epílogo. E esta teve um final feliz. Claro que quando cheguei a Portugal não descansei enquanto não arranjei forma de enviar a medicação necessária para induzir uma puberdade artificial à minha menina-prodígio. Tive o cuidado de, na carta em que lhe explicava como tomaria as hormonas artificiais, escrever também que ela poderia menstruar mas seria quase impossível ter filhos. Mas ela respondeu-me, tempos depois, que isso já não seria problema de maior. Poderia sempre adoptar uma criança. Ou não se casar de todo. O importante era conquistar o lugar que a sociedade injustamente lhe negava pela sua doença. E, há alguns meses, recebi uma mensagem eufórica dela a dizer que já tinha cumprido ritual de iniciação!
Espero, do fundo do coração, que sejas feliz, Artemisa!
02
Mai10

[dia da mãe] tive gémeos e sobrevivemos todos!

beijo de mulata
Post dedicado à Sara (a próxima sobrevivente) e à Ana (que tem sobrevivido fantasticamente com dois filhos lindos) e a esta senhora, mãe da Ordina e do Ordino (da esquerda para a direita), que teve de ser internada por uma anemia grave, juntamente com os filhos, já que um deles sofria de desnutrição porque chorava menos e portanto ficava menos tempo ao peito...
02
Mai10

[dia da mãe] glamour na savana

beijo de mulata
Prémio Miss Dia da Mãe 2008.
Bonita, elegante, arranjada e feliz a caminho do trabalho, acompanhada do seu rebento. Alguém faria melhor?

(A pedido de várias famílias vou aqui revelar que o que esta mamã levava na mão era um pedaço de cana-de-açúcar para ir mordiscando enquanto caminhava até à sua machamba.)
01
Mai10

[fundamentalismo nutricional] no melhor pano cai a nódoa...

beijo de mulata
Na consulta de ontem:
- O meu filho nunca comeu nada que não fosse feito em casa, nada com corantes ou conservantes, temos imenso cuidado na escolha da comida que lhe damos. É tudo biológico e evitamos a carne e o peixe.
- Mas ele não come carne nem peixe de todo?
- De vez em quando come, também não somos fundamentalistas. Mas no dia a dia optamos por proteínas vegetais de alto valor biológico. E cozinhamos tudo sem sal.
- Muito bem... mas olhe, a partir dos 12 meses [de facto ele já tinha cinco anos] já se pode começar a colocar um pouco de sal na comida, até porque eles estão a crescer e precisam de sódio.
- Ah, não Doutora, mas nós não pomos mesmo sal nenhum. Só usamos Caldo Knorr biológico...

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