Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

17
Mai10

[o esqueleto e o armário] a propósito do casamento gay

beijo de mulata
Dizem que todas as pessoas têm um esqueleto no armário. E eu que, à excepção de um ou outro pormenor, não sou excepção para nada, também já tive o meu. Foi no primeiro ano da faculdade. Chamava-se Cristóvão, trocadilho da co-autoria do meu irmão e de uma fantástica reserva de Dão num jantar de família generosamente regado, em que o pobre esqueleto passou a ser apelidado de Cristóvão Sem Lombo. Utilizei-me dele, não para qualquer prazer mórbido, como certamente gostariam muitos dos senhores que cá vêm parar através de pesquisas na web*, mas para estudar Anatomia I.

E foi já em Julho, mês que, segundo o regente da Cadeira, seria sempre no dia seguinte, que descobri que não estava a viver com um esqueleto... mas com uma esqueleta! Não havia dúvidas. Depois de lidos todos os tratados de Anatomia (um Rouvière, dois Rouvières, três Rouvières e um Testut), aquele ilíaco e aqueles ossos da face já não enganavam uma estudante de Medicina que desde Outubro estudava como se amanhã fosse vir mesmo... (E por acaso veio.)

E foi então que me vi a braços com a embaraçosa tarefa de revelar à minha tradicional e conservadora família que o esqueleto, a quem todos chamavam D. Cristóvão, iria sair do armário para se chamar Rosa (nome romântico também da autoria do meu irmão, que quando me via passar com os ossos para o escritório me perguntava: "Senhora, que levais no regaço?", ao que eu respondia "São rosas, senhor, são rosas...").

Para minha surpresa, a minha família reagiu com naturalidade (e até com alguma indiferença) à notícia, sugerindo apenas que no ano seguinte ele saísse de vez do meu armário.

Moral da História: Se o esqueleto que tens no armário te embaraça, podes sempre despachá-lo para um colega mais novo.

* Por mais que eu reze à Nossa Senhora do google.
17
Mai10

[o fio da navalha] fuga de cérebros

beijo de mulata
Ela tinha um cérebro tão activo que só conseguia descansar em silêncio absoluto e com tampões de silicone nos ouvidos. Para o marido aquele cérebro imparável era uma dor de cabeça. Para os colegas mais velhos ela era um génio. Os colegas mais novos, porém, que nunca a conseguiam acordar durante a noite, nem mesmo com o telemóvel da reanimação, cochichavam que aquele cérebro era genial e, portanto, durante a noite fugia certamente para Silicon Valley.
16
Mai10

[a vida é simples] enjoy modern art

beijo de mulata

Picasso, 1943, Cabeça de Touro (construída a partir de um selim e de um guiador de bicicleta).

Meus amigos, a arte moderna é dolorosamente simples... e quando sentirem que não entendem alguma coisa respirem fundo e lembrem-se de mim: "A arte é para os leigos"!

Mas aqui vai uma dica para os que continuam a insistir que não compreendem: Se a obra estiver pregada na parede é um quadro. Se conseguirmos andar em torno dela é uma escultura. Se não for uma coisa nem outra, é uma "instalação". Nunca falha!
15
Mai10

[circularidades de uma pediatra loira] a minha vida dava um filme cigano

beijo de mulata

Há alguns anos, era eu uns anos mais nova (com a devida vénia aos soldados gozões que imortalizaram o Marquês de la Palice), quando uma noite, estando de urgência no meu hospital, uma colega me veio chamar porque estava a ver um menino de etnia cigana e suspeitava que ele podia ter uma displasia ectodérmica (tinha dois anos, ainda não tinha dentinho nenhum - e, ao contrário da outra mãe, esta nunca o tinha pensado em levar ao dentista - tinha muito pouco cabelo, não transpirava e tinha infecções respiratórias umas atrás das outras).

A mãe, como qualquer cigana que se preze, estava apenas preocupada com as "inginas" e com o "gómitos" e completamente a leste do quadro global. Expliquei-lhe que lhe ia marcar uma consulta para esclarecermos melhor o que se passava, mas a mãe começou de imediato a desvalorizar a situação. E que tinha de ir todos os dias com o marido para a venda e que não ia ter tempo, que até já uma vez tinha andado lá no hospital nas consultas com o irmão mais velho porque "era atrasado" e que até o "tinham posto a dormir para fazer uma sornância" e nunca se tinha descoberto nada. Que não, que não ia, que ela não era pessoa para acreditar em médicos e andar em hospitais a perder tempo.

Lá me enchi de paciência e expliquei à mãe que a consulta era para ver se o menino deixava de ter tantas vezes falta de ar, para perceber se ele transpirava ou não porque se não transpirasse de todo podia ter um golpe de calor - e até podia ter convulsões - e para esclarecer por que é que ainda não tinham nascido os dentinhos ao menino. Isto, pelo menos, é o que eu me recordo de ter dito. Como se a mãe tivesse ficado razoavelmente convencida, marquei a consulta para a semana seguinte.

Na segunda-feira, chego de manhã ao hospital e deparo-me com um acampamento de ciganos por todo o jardim, as carrinhas nas traseiras do hospital, fogões de ar livre estrategicamente montados mesmo em frente ao reservatório de gases medicinais e vários grupos dispersos, sentados aqui e ali como quem espera alguma notícia importante e pensei: "Deve estar algum ciganito muito doente internado por aí em alguma enfermaria..." E fui trabalhar.
Ao início da tarde deixei a enfermaria e fui para o pavilhão das consultas. De súbito, reconheci os pais do menino que eu tinha mandado vir à minha consulta, notei que estavam numa posição de destaque no grupo, que pareciam tensos e que cochicharam qualquer coisa para um homem mais velho, após o que todos se voltaram na minha direcção... E foi mais ou menos assim que percebi que aquele ajuntamento étnico estava à espera... da minha pessoa. E preparavam-se para me seguir para dentro do pavilhão.

Engoli em seco e lá fiz das tripas coração, dirigi-me à mãe, cumprimentei-a e perguntei-lhe quem era o sogro. Este apresentou-se de imediato e convidei-o para entrar como acompanhante dos pais. Para meu alívio, ele fez o que se espera de um chefe de família: voltou-se para a multidão e ordenou-lhes que esperassem, que ele ia ali a uma consulta com o neto e já vinha.

Lá entrámos, comigo intrigadíssima por aquele aparato todo, com a mãe e o pai a desfazerem-se em lágrimas e com o avô com um ar muito circunspecto. "Isto promete...", pensei. Já na consulta, depois de algumas perguntas, fiquei a saber que a mãe tinha percebido que eu lhe tinha dito que o menino não teria dentes.

- Como?! - exclamei para mim mesma. Mas verdade verdadinha é que, embora eu não me lembrasse de lhe ter dito isso, lá que existia essa possibilidade, existia... E então, ó valesse-me Nosso Senhor dos Aflitos, como é que eu ia descalçar aquela bota assim sem mais nem menos? Lá peguei no telefone e expliquei à técnica de radiologia que precisava de uma ortopantomografia urgente. Que sabia que não era um exame para se pedir àquela hora, que sabia que era preciso marcar com antecedência, que sabia que só excepcionalmente se fazia a uma criança de dois anos, mas que compreendesse que era uma absoluta emergência médica... A técnica, estupefacta e desconfiada, mas compadecida da minha voz aflita, lá anuiu num "Venha lá, então." como quem diz "Olhe que se continua a preocupar-se tanto com os meninos vai morrer cedo."

Meia hora depois, naquele hospital havia mais uma família aliviada, mais uma médica histericamente feliz (embora por razões ligeiramente diversas), mais uma técnica de radiologia a pensar "Estas pediatras d'agora são loucas!", menos um ajuntamento étnico - que dispersou em menos de um ai. E mais uma consulta começou tranquilamente...
15
Mai10

[tularémia] este blog não possui livro de reclamações

beijo de mulata
Depois de várias graciosas reclamações a propósito deste post, depois de vários pedidos de esclarecimento e até de uma troca de impropérios entre duas pessoas que se sentiram visadas (valha-me São Vito, que não sei como lidar com delírios de referência), gostaria que esclarecer que o vocábulo composto "francesinha tularense":

a) não se refere a uma galdéria qualquer de origem francesa nem mesmo à soberba iguaria gastronómica nortenha com o mesmo nome;
b) se refere, obviamente, ao agente da tularémia, Francisella tularensis, tal como o indicam as referências "lebre mal passada" e "adenomegália cervical", não sei onde foram buscar essas ideias lúbricas, ó valha-me Deus;
c) constitui uma incorrecção do ponto de vista científico;
d) não tem qualquer sentido do ponto de vista semântico;
e) é irrepreensível do ponto de vista sintáctico, mas isso não interessa muito...

Pronto, já disse.
14
Mai10

[et in arcadia ego] um milagre

beijo de mulata



Quanto a nós, há que persistir, embora o trabalho nos custe a pegar... Depois de me despedir do pai e do menino vêm chamar-me para ir ver uma mulher que tem um recém-nascido de poucos dias ao colo. É o neto. A mãe está doente e teve de ser transportada para a cidade, sem possibilidade de cuidar da criança, uma situação extremamente delicada.

- Moxeleliwa*, Irmã? – cumprimenta-me.
Começo a achar piada a que me tratem por Irmã... E de facto, entre ser Irmã ou ter uma qualquer doença grave que me torne uma mulher estéril, penso que ser Irmã é mais bem cotado por estas bandas...

A avó, ansiosa, só fala Macua e não a compreendo, mas o enfermeiro diz-me que me pede leite em pó para dar à criança. As Irmãs têm leite para lactentes no armazém, mas o problema é a água... É praticamente impossível conseguir água potável nas aldeias que rodeiam a Missão e portanto oferecer-lhe o leite é uma irresponsabilidade da minha parte e poderá mesmo equivaler a uma condenação da criança a sucumbir a uma gastroenterite. Os adultos já estão habituados e praticamente imunes às bactérias e parasitas mais corriqueiros, mas os recém-nascidos são muito frágeis.

– Onde vive?
A sua aldeia fica a 50 km daqui. Já passei por lá com a Irmã Lurdes na campanha de vacinação e sei que não tem uma fonte de água potável, pelo que as pessoas vão buscar a água que bebem ao rio – que na estação seca quase não passa de vários charcos de água parada a céu aberto – lavam-se no rio e é também nele que fazem os despejos. E está fora de questão ferver a água para preparar o leite, já que a pouca lenha que as famílias conseguem arranjar mal dá para cozinhar.

Ponho o problema à Irmã Lurdes, que me diz para a levar à D. Catarina, uma das parteiras do hospital. Exponho-lhe a situação, após o que se levanta seriamente, sem uma palavra. Deve talvez ir tentar encontrar uma ama de leite entre as várias mamãs que acabaram de ter filhos, penso. Mas, para meu assombro, regressa pouco depois com um preparado de ervas que fricciona no peito da mulher e dá-lhe a comer uma espécie de leguminosa crua (penso que se chama feijão jugo) e que ela ingere sem um protesto, enquanto a D. Catarina lhe estimula o peito. Não sei porquê sinto-me nitidamente a mais neste momento, há qualquer coisa que não compreendo e onde sinto que não pertenço... Retiro-me, pois, no momento em que a D. Catarina lhe coloca o bebé ao peito.

Quando regresso, ao fim da tarde, o bebé já começou a mamar um pouco e a avó parece animada. Dias depois, contaram-me que lá tinha estado também uma curandeira, que tinha feito uma "lavagem tradicional" ao peito da avó...

Perguntei depois à D. Catarina como conseguira tal coisa, ao que ela respondeu, muito simplesmente:

– Não fui eu, foi o bebé. São os filhos que fazem o leite das mães!

É incrível! Não que eu não soubesse esta lição da Fisiologia, mas ver resumido tão simplesmente e em forma de adágio aquilo que eu tinha aprendido com mecanismos complicados de glândulas, hormonas e feedbacks negativos deixou-me completamente atarantada... E mais ninguém parece surpreendido com este autêntico milagre! Tempos depois, já de regresso a casa, viria a descobrir que este fenómeno de realeitamento materno, que me pareceu tão exótico e culturalmente estranho, não é assim tão raro e é actualmente alvo de vários estudos. Eu só falo por mim, mas há tanto a aprender com África...

* O sol brilhou bem para si hoje?

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub