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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

26
Mai10

[momentos nicola] o glamour de paris

beijo de mulata
Interrompemos a emissão da história da placa para fazer o seguinte comunicado:

Um dia vou fazer uma revolução na Versailles!
Mas hoje ainda não foi o dia...

(Há um pequeno problema: como não tenho pelo menos dupla personalidade, não consigo fazer a revolução sozinha... Ideias?)
26
Mai10

[improbabilidades] tentar arranjar a placa em moçambique

beijo de mulata
(...continuação)

– Bem, a partir de agora já estou mesmo por tudo... Seja o que Deus quiser. Eu nem acredito que vou a uma oficina de automóveis para arranjar a placa...

Chegámos rapidamente à Auto-Nampula, quatro ou cinco ruas acima, mesmo ao lado do Shoprite, um supermercado sul-africano limpo, moderno, com cores garridas e grandes balcões, que explora obscenamente tanto os clientes como os empregados e em frente ao qual os seguranças não nos deixaram estacionar, mesmo sendo por poucos minutos, como explicámos, porque perdiam visibilidade na rua para detectarem potenciais ladrões... Mas eu tenho fé e, perdoem-me os instintos demolidores, acredito que estes estabelecimentos serão os primeiros a serem saneados quando vier a revolução! Quer dizer, revolução é maneira de dizer... quando o desenvolvimento for sustentável e não esta exploração desenfreada que não cria riqueza nenhuma... Mas voltemos à questão da prótese dentária, que eu até nem gosto de discutir ideologias, sobretudo quando estou a meio de uma oportunidade única, que é contar uma história sobre uma prótese dentária num texto sobre Moçambique... Estávamos na Auto-Nampula. Fomos imediatamente atendidas pelo dono, de quem as Irmãs são clientes regulares.

– Mostre lá a placa, Irmã... Hum... [Ou foi impressão minha ou o senhor fez um ar levemente enojado?] Não me parece que seja possível. Com os nossos ferros de soldar vai ser pior a emenda que o soneto...
– Mas não pode sequer tentar? Assim como assim... partida já está ela.
– Não, há um latoeiro por aqui que é mais jeitoso para estes trabalhos assim pequenos...
– Um latoeiro? – As Irmãs já nem tinham ânimo para se escandalizarem... – Onde é que o podemos encontrar?
– Vou pedir para vos levarem lá. Eu levava-as pessoalmente, mas tenho muito trabalho e é preciso saber falar Macua...
– Tudo bem.
Chamou um empregado.
– Leva as Irmãs ao senhor que conserta as panelas aqui no bairro, como é que ele se chama? Lanceta, não é?
– Lagarto, patrão.

Seguimos o empregado africano para fora da oficina à procura do tal senhor Lagarto que saberia fazer soldaduras delicadas. O empregado não podia ter mais de 17 anos e tinha uma agilidade para saltar montes de entulho, aglomerados de lixo e poças de lama que nos fazia sentir ridículas de cada vez que enterrávamos os sapatos em mais um monte de qualquer-coisa-que-nem-quero-ver-o-que-é. As Irmãs, do mal o menos, ainda estavam de sandálias, mas eu tinha decidido ir à Catedral e ao Hospital Central de sapatinho de salto alto e calças de seda, que agora iam a rojar pela lama... É tão triste ser loira, benza-nos Deus... Mas paciência. Para trás é que eu já não voltava!

Seguíamos pelo meio das ruelas ladeadas por palhotas e algumas construções comerciais de cimento, algo toscas e com os nomes mais improváveis: a “Barbearia Alvalade XXI”, uma latrina que ostentava a pomposa informação de que se tratava de uma "Casa de Banho Pública Para Necessidades Maiores e Menores", a inevitável barraquinha de Coca-Cola... Algumas crianças que brincavam na rua paravam para nos dizer adeus ("Tatá, Irmãs!"), um pouco divertidas com o nosso ar espavorido.







– Começo a achar que isto não vale uma dentadura... Que raio de ideia a nossa! – desabafou a Irmã Conceição.
– Bem, mas já agora que aqui estamos...

Chegámos, por fim, ao "estabelecimento" do Sr. Lagarto, surpreendentemente um benfiquista ferrenho, cuja casa tinha emblemas do Benfica de vários tamanhos colados nas janelas e pintados nas paredes exteriores. Consertava algumas peças de metal à porta de casa e não deu pela nossa chegada.

Ihali, papá? – Cumprimentámo-lo.
– Boa tarde, Irmãs.

O empregado da oficina falou com ele em Macua, após o que pediu para ver a prótese dentária. Examinou-a longamente sem dizer palavra e, por fim, disse qualquer coisa que não compreendemos ao empregado.

– Quanto pede pelo trabalho? – Perguntámos.
– Não, não está a botar preço. Está a dizer que há outra pessoa que pode fazer este trabalho muito melhor.
– O que é que faz essa pessoa?
– Arranja câmaras-de-ar de bicicletas.

(Suspiro... Um ligeiro elevar dos olhos para o céu... Bem, mas quem recorre a um latoeiro para consertar a placa também pode procurar um homem que conserta câmaras-de-ar de bicicletas, penso. As Irmãs, pelos vistos pensaram o mesmo.)
– E fica muito longe daqui?
– Não, é já ali.

(continua...)

Nota: Ao contrário do que dizem as más línguas, esta história teve mesmo um fim. Um pouco inesperado, é certo, mas a história não tem culpa disso. E a realidade também não tem a menor obrigação de ser previsível. De qualquer modo, desde o início que já estávamos a trabalhar no campo do improvável... Lamento mas este blog não possui livro de reclamações.
25
Mai10

[improbabilidades] tentar arranjar a placa em moçambique

beijo de mulata
Contextualizando: Agosto de 2004, segunda vez em África. Uma médica loira acabada de chegar a Nampula, ainda mal refeita de uma experiência surreal no aeroporto de Maputo... No dia da partida para uma missão em Iapala, no meio do mato.

– Às nove da manhã temos missa na Catedral – tinha-me dito a Irmã Conceição – mas depois tenho de ir tratar de um problema… e nem sei como é que o vamos resolver...
– Então?
– Uma das nossas Irmãs partiu a placa...
– A placa?
– Sim, ai, como é que se diz... a prótese dentária.
– Que aborrecido, realmente... Mas e não se pode arranjar?
– É esse o problema. Aqui, infelizmente, não há dentistas. Há um consultório de Estomatologia no Hospital Central, mas a única coisa que lá fazem é arrancar dentes. Não fazem implantes, nem próteses, nem sequer colocam chumbos.
– Mas porquê? Não têm conhecimentos para isso? Ou é por falta de equipamento?
– As duas coisas, penso eu. Que raio de país para se partir uma placa... Nesta terra, se uma pessoa precisa de qualquer coisa que implique algum savoir-faire é uma desgraça! Isto até parece anedota, andarmos aqui tão preocupadas com uma placa.
– O que é que pensa fazer então, Irmã?
– Bem, vamos lá ao consultório de Estomatologia. Partida já ela está. Pode ser que até a consigam consertar, ou pelo menos arranjar uma solução provisória. De outra forma não há mesmo outra solução senão ela ir a Maputo ou à África do Sul para fazer outra. E sabe Deus como é que vai ficar...
– Mas o Estomatologista não saberá mesmo consertá-la? Pode ser que até saiba...
– Duvido. Mas é o nosso único recurso. Quer vir connosco ao Hospital Central? Se calhar gostava de o ficar a conhecer.
– Claro! Adorava conhecer o Hospital! Para fazer turismo hospitalar estou sempre pronta!
– Então vamos, vá arranjar-se que já está quase na hora da missa.

Da Catedral ao Hospital Central de Nampula é um pulinho de carro. É um edifício notável com cinco andares, mas as condições actuais, por muito boas que já tenham sido, são deploráveis. O cheiro é nauseabundo. Uma mistura de cheiro a corpos (não há água canalizada para os doentes se lavarem), dejectos, sangue e comida, com o cheiro ácido da cetrimida, utilizada como desinfectante. Mas, dado o adiantado da hora, já não fomos visitar nada no hospital e dirigimo-nos de imediato ao consultório de Estomatologia. Tratava-se de um consultório privado, mas nem por isso tinha melhores condições...

Fomos recebidas por um Estomatologista indiano, um velhote de olhar afável, mas que usava dois incisivos de ouro, faiscantes, que lhe davam um aspecto tenebroso quando sorria e uns óculos de aros de tartaruga, cujas hastes tinham aspecto de estarem presas com fita adesiva já a desfazer-se desde o tempo colonial. Articulava mal o Português, falando com a boca muito fechada, apesar de nos afirmar que já estava em Moçambique há mais de 30 anos. Tal como a Irmã previa, informou-nos de que não dispunha de equipamento para consertar a prótese dentária. Mas que talvez a pudessem soldar na oficina em frente ao mercado.

– Na oficina em frente ao mercado? Qual oficina?
– Aquela... garagem, balbuciou com óbvia dificuldade.
– Não conheço nenhuma oficina de próteses dentárias na cidade...
– Não, não é oficina de próteses, é garagem mesmo... de carro.
– A garagem?! Mas como é que eles nos podem arranjar a prótese?
– Eles têm ferro de soldar pequeno. Vão lá, soldam e eu depois acabo de consertar.

As Irmãs estavam estarrecidas! Mas uma vez que não havia mesmo outra hipótese... Saímos do Hospital já dispostas a tentar a sorte na mecânica de automóveis, eis senão quando, a meio do caminho, a Irmã Conceição teve uma ideia brilhante:

– O técnico de informática! Ele esteve lá em casa ontem e andou a soldar algumas peças no nosso fax novo.
– Ah, realmente! Ele deve estar mais habituado a trabalhos delicados de pequenas peças do que os mecânicos de automóveis.

Mais reconfortadas com a ideia, lá nos dirigimos para a loja de informática, a Nampula Digital. No entanto, azar dos azares, o técnico informou-nos, desolado, que o ferro de soldar se tinha partido nesse dia.

– Nem sei quando é que vou conseguir mandar vir outro da África do Sul. O meu fornecedor só vem cá no próximo mês e quase de certeza que só aí é que lho vou poder encomendar. Já tentei contactá-lo, mas deve andar em entregas.

– Mas não tem telemóvel? Como é que ele recebe as encomendas?
– Recebe-as pessoalmente. É que na maior parte das estradas não há rede...
– O que é que nos aconselha, então?
– Acho que é melhor irem à garagem mesmo.
Lá entrámos outra vez no carro.
– Bem, a partir de agora já estou mesmo por tudo... Seja o que Deus quiser. Eu nem acredito que vou a uma oficina de automóveis para arranjar a placa...

(continua...)
25
Mai10

[as melhores do serviço de urgência] mickey mouse

beijo de mulata
Um tributo ao meu amigo JC, no seu infelizmente extinto Desabafos de um Médico:

A Anilde, uma linda menina negra de 4 anos, caíu. Fez uma ferida no meio da testa, não muito grande, e foi assim com os seus pais à Urgência. Depois de a convencer que não lhe ia "coser a cabeça" com uma agulha e que os "adesivos" não custava nada, coloquei as luvas.

Pergunta da praxe:
- Então quem é que tem umas luvas iguais às minhas, assim branquinhas?
- ...
- Dou-te uma pista: tem orelhas muito grandes e pretas!
- Ah! É a minha tia Felicidade!

Resolvido o problema, na fase das despedidas, fez uma cara triste e perguntou entredentes se eu não lhe ia pesar o coração. Disse-lhe que tinha a certeza que era muito grande e pesado. Vá-se lá entender.
24
Mai10

[improbabilidades médicas] sua eminência, o papa

beijo de mulata
(Post a propósito da gaffe do Sr. Eng. Pinto de Sousa)

Certa vez, estava eu no final de uma palestra sobre a lepra em Moçambique numa conferência realizada pela ONG com que vou colaborando, quando de repente vejo um senhor a ser transportado quase arrastado para fora da sala e alguém que gritava, aflito:
- Sra. Doutora, Sra. Doutora, precisamos de ajuda!
Saí da sala a correr e vi que se tratava de um senhor já de certa idade, que envergava uma camisa clerical. E estava extremamente pálido, com ar que quem ia perder a consciência em segundos. Disse para os homens que o levavam:
- Deitem-no no chão, agora!
Salto para cima do senhor (salvo seja), pego-lhe no pulso e começo os primeiros passos do Suporte Básico de Vida:
- Senhor Padre, Senhor Padre, sente-se bem? Está a ouvir-me?
Nisto, um outro senhor por detrás de mim toca-me nos ombros e repreende-me:
- Ó Doutora, não é Padre, é Bispo!

(Valha-me São Vito, que nunca sei lidar com neuróticos...)
23
Mai10

[improbabilidades] recriação histórica

beijo de mulata
Já vos contei que tive uma aluna que era pasteleira em Aljubarrota? E por acaso não se dava nada bem com os colegas espanhóis do Erasmus... mas acho que não era por razões históricas. Acho que era por qualquer história do coração e as discussões, felizmente, nunca me constaram que metessem a pá do forno. Havia, quando muito, uns zunzuns sobre a batedeira e o rolo da massa...
22
Mai10

[lendas e tradições] beijo de mulata

beijo de mulata
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Há por todo o país uma bela e pequena flor que cresce na orla marítima e parece ter particular apetência por se desenvolver nas muralhas dos velhos monumentos portugueses. Vejo-a nas paredes da fortaleza de Maputo, no adro da catedral, nas torres do forte da Ilha de Moçambique.

Leona – filha de pai de Viseu e mãe da tribo Iao no Niassa – diz-me o seu nome. Chama-se a flor ‘beijo de mulata’. E esclarece-me que não é uma flor – são almas. As almas de milhares de crianças mulatas que nunca conheceram o seu pai português – e que, depois de mortas, o buscam ainda na forma de flor que se agarra às memórias do império. Escalam as paredes para, tentando chegar ao céu, se juntarem enfim ao pai.

Com a devida vénia a este senhor, que nos delicia com as suas caminhadas.

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