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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

14
Mai10

[et in arcadia ego] um milagre

beijo de mulata



Quanto a nós, há que persistir, embora o trabalho nos custe a pegar... Depois de me despedir do pai e do menino vêm chamar-me para ir ver uma mulher que tem um recém-nascido de poucos dias ao colo. É o neto. A mãe está doente e teve de ser transportada para a cidade, sem possibilidade de cuidar da criança, uma situação extremamente delicada.

- Moxeleliwa*, Irmã? – cumprimenta-me.
Começo a achar piada a que me tratem por Irmã... E de facto, entre ser Irmã ou ter uma qualquer doença grave que me torne uma mulher estéril, penso que ser Irmã é mais bem cotado por estas bandas...

A avó, ansiosa, só fala Macua e não a compreendo, mas o enfermeiro diz-me que me pede leite em pó para dar à criança. As Irmãs têm leite para lactentes no armazém, mas o problema é a água... É praticamente impossível conseguir água potável nas aldeias que rodeiam a Missão e portanto oferecer-lhe o leite é uma irresponsabilidade da minha parte e poderá mesmo equivaler a uma condenação da criança a sucumbir a uma gastroenterite. Os adultos já estão habituados e praticamente imunes às bactérias e parasitas mais corriqueiros, mas os recém-nascidos são muito frágeis.

– Onde vive?
A sua aldeia fica a 50 km daqui. Já passei por lá com a Irmã Lurdes na campanha de vacinação e sei que não tem uma fonte de água potável, pelo que as pessoas vão buscar a água que bebem ao rio – que na estação seca quase não passa de vários charcos de água parada a céu aberto – lavam-se no rio e é também nele que fazem os despejos. E está fora de questão ferver a água para preparar o leite, já que a pouca lenha que as famílias conseguem arranjar mal dá para cozinhar.

Ponho o problema à Irmã Lurdes, que me diz para a levar à D. Catarina, uma das parteiras do hospital. Exponho-lhe a situação, após o que se levanta seriamente, sem uma palavra. Deve talvez ir tentar encontrar uma ama de leite entre as várias mamãs que acabaram de ter filhos, penso. Mas, para meu assombro, regressa pouco depois com um preparado de ervas que fricciona no peito da mulher e dá-lhe a comer uma espécie de leguminosa crua (penso que se chama feijão jugo) e que ela ingere sem um protesto, enquanto a D. Catarina lhe estimula o peito. Não sei porquê sinto-me nitidamente a mais neste momento, há qualquer coisa que não compreendo e onde sinto que não pertenço... Retiro-me, pois, no momento em que a D. Catarina lhe coloca o bebé ao peito.

Quando regresso, ao fim da tarde, o bebé já começou a mamar um pouco e a avó parece animada. Dias depois, contaram-me que lá tinha estado também uma curandeira, que tinha feito uma "lavagem tradicional" ao peito da avó...

Perguntei depois à D. Catarina como conseguira tal coisa, ao que ela respondeu, muito simplesmente:

– Não fui eu, foi o bebé. São os filhos que fazem o leite das mães!

É incrível! Não que eu não soubesse esta lição da Fisiologia, mas ver resumido tão simplesmente e em forma de adágio aquilo que eu tinha aprendido com mecanismos complicados de glândulas, hormonas e feedbacks negativos deixou-me completamente atarantada... E mais ninguém parece surpreendido com este autêntico milagre! Tempos depois, já de regresso a casa, viria a descobrir que este fenómeno de realeitamento materno, que me pareceu tão exótico e culturalmente estranho, não é assim tão raro e é actualmente alvo de vários estudos. Eu só falo por mim, mas há tanto a aprender com África...

* O sol brilhou bem para si hoje?

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