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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

13
Mai10

[et in iapala ego] da cólera e da raiva de não poder fazer nada

beijo de mulata
(continuação)

O olhar do pai diz-me finalmente que era isto que estava há pouco a tentar comunicar-me: o filho tem pavor da água há alguns dias e não consegue engolir... Da porta, a Irmã Lurdes, que tinha acabado de chegar para me obrigar a ir descansar, ainda assistiu à cena e olha-me consternada. Também ela acabou de compreender que o menino tem raiva e sendo assim não há qualquer hipótese de cura... Está tudo finalmente explicado, a dor na perna, a ansiedade do pai, a viagem extenuante numa tentativa desesperada de salvar este filho tão especial, o brilho quase selvagem no olhar do menino, a agitação, a febre...

– O menino foi mordido por um cão?
O pai nega, ansiosamente... Para além de não conseguir engolir, também está agitado e às vezes agressivo, diz. Examinando melhor o local para onde o menino aponta, realmente compreendo que não pode ter sido um cão a fazer uma cicatriz de mordedura tão pequena.

– Que bicho lhe mordeu?, pergunto, compreendendo subitamente a verdadeira origem desta expressão popular.
O pai responde que nenhum, nenhum bicho, é isso que o intriga – pela conversa, agora com a Irmã Lurdes a traduzir, percebo que ele conhece os sintomas da raiva e tem essa suspeita no filho. Teve uma pequena ferida há algum tempo na perna, mas nem sequer ligou importância.

– Costuma dormir ao relento?, pergunto.
Um ligeiro aceno de anuimento. Só pode ter sido um morcego... Nem posso acreditar... E pensar que, se não fosse este pequeno incidente com o copo de água, o diagnóstico desta doença terrível haveria de se me escapar por entre as unhas!
O que será que o pai espera de nós? Será que não sabe que a raiva nesta fase já não tem cura e tem esperança de que façamos algo, ou pretende só a confirmação do diagnóstico? Mas mais vale esperar pela manhã para ter essa conversa tão delicada. Pai e filho devem estar exaustos... A Irmã Lurdes, já habituada aos muitos casos de raiva que aparecem por ano, desfaz o comprimido, coloca-o numa colher e senta-se ao lado do menino:

– Se eu te tapar os olhos, achas que consegues tomar o remédio para passar a dor? Vais sentir-te melhor...
Com os olhos vendados para não ver a água que o apavora e lhe provoca espasmos intensos na garganta, a muito custo, consegue engolir o comprimido desfeito e algumas colheres de água...

Não consegui dormir quase nada esta noite. Nem eu nem as Irmãs. Não nos podemos oferecer para cuidar do menino no Hospital porque o prognóstico é fatal a breve trecho e os mortos não podem ser enterrados longe do local onde nasceram. E não havendo estradas para aquela zona também não podemos ir levar o menino a casa... Mas de manhã o pai é categórico: quer ser ele próprio a cuidar do filho e levá-lo para casa o mais rápido possível para lhe poder dar algum descanso no final da vida e levá-lo a despedir-se dos seus... Enfim, provavelmente a razão é outra... Certamente o que vai fazer é procurar o auxílio de algum curandeiro... Fuga em frente. Mas não o censuro... quem resistiria a esta aliteração? Apesar de tudo, aceitou de bom grado o transporte de jeep até onde a estrada termina, e mais os analgésicos e sedativos. Emocionou-me a aceitação e a compostura daquele pai de família, mantendo o pragmatismo e o cuidado com o filho, em circunstâncias tão terríveis e tão revoltantes.

Quanto a nós, há que persistir, embora o trabalho nos custe a pegar...

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