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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

30
Abr10

[a vida é simples] ...ou pelo menos devia...

beijo de mulata

Esta ficou-me atravessada... A Igreja de Murrupula (Nampula), restaurada pelos Missionários de S. João Baptista, tinha originalmente sobre o altar uma pintura plena de significado religioso e histórico, resumindo numa parede as origens de um povo, os descobrimentos, a colonização, a guerra civil e os dias actuais, em íntima comunhão com a vida de Cristo.

No entanto, antes da inauguração, o Bispo de Nampula não aprovou a pintura, alegando que colocar factos históricos sobre o altar "não era litúrgico" (sic), pelo que os missionários se viram obrigados a pedir ao artista que a substituísse por outra, mais liturgicamente correcta, mas mais pobre em significado, mais vazia de sentimentos, menos inpiradora para o povo...

Não compreendo. Ainda se a sentença tivesse vindo de outra cabeça menos esclarecida, menos viajada... agora vinda de um homem que estudou História Universal e História de Arte, habituado a visitar igrejas em toda a Europa... como pode não aceitar a criatividade de um artista que tenta reinventar a vida de Cristo na voz do seu país?
29
Abr10

[o rei vai nu] welcome to swaziland

beijo de mulata


Corria o ano da graça de 2003 (estou sempre a repetir-me, mas para quem só chegou agora, foi o meu ano dos encantos de primeira vez em África) e, depois de três semanas no meio da savana, na Casa do Gaiato, fui passar o fim-de-semana com uns amigos à Suazilândia, país minúsculo cuja distância entre fronteiras é mais ou menos equivalente à fila na A2 para Lisboa num dia de chuva (ok, ok, é um pouco maior... passa bastante mais que a segunda ponte do Feijó, vá...). Um país com contrastes violentos, montanhas lindíssimas, reservas naturais que são o paraíso do birdwatching, plantações de cana-de-açúcar a perder de vista e tradições inacreditáveis e anacrónicas que fazem as delícias dos amantes do National Geographic e o arrepio dos movimentos em defesa da dignidade da mulher. Por exemplo, todos os anos, mais de cinquenta mil virgens (!) vão em topless em romaria até ao palácio real oferecer uma cana-de-açúcar ao rei, numa cerimónia tradicional em que este escolhe uma delas como esposa - a poligamia, aliás, é aceite como natural e é regra em todo o país.

No final do primeiro dia fomos jantar ao Royal Swazi Sun Hotel e, à entrada, os meus amigos comentaram uns para os outros:
- Olha, está cá a família real.
Olhei para o lado e vi alguns homens de smoking, lado a lado com outros meio despidos, cobertos parcialmente com peles de animais, panos coloridos e com colares tradicionais ao pescoço. Choquei-me...
- Que horror, olhem como é que eles tratam os empregados, fazem-nos andar meio despidos como se fossem selvagens.

Os meus amigos olharam-me, boquiabertos, como quem tivesse acabado de perceber que eu era loira e, mesmo assim, não acreditava no que tinha acabado de ouvir...
- Mas os empregados são os que estão de smoking... a família real é que anda sempre despida. É o traje tradicional.

Sinceramente, acham-me capaz de ter adivinhado uma improbabilidade destas? Já só falta dizerem-me que o rei também vive numa palhota! Ah... Ai vive, é? Hum... Ok, pronto, é lá com ele. Estes Suazis são doidos!
29
Abr10

[as melhores do serviço de urgência] veja lá se ainda lhe compra uma placa...

beijo de mulata
- Ó Doutora, o meu menino já anda há meses a babar-se e a colocar os dedos na boca, aflito das gengivas e nunca mais lhe nasce dentinho nenhum... Nós levamo-lo à praia, damos-lhe óleo de fígado de bacalhau e nada.

(Era um lactente de cinco meses!)

- Ah, não se preocupe, isso é normal. E com cinco meses nem sequer tem a dentição atrasada. Deixe cá ver... bem, ainda não há sinais de dentinhos a querer romper, mas mais mês menos mês já começam a nascer.

- Ó Doutora, mas isto é mesmo normal? Veja lá, se for preciso levo-o ao dentista!

(Tive mesmo de deixar cair o espéculo do otoscópio para esconder a cara porque só me apetecia sorrir às gargalhadas.)
29
Abr10

[pequenas vocações] vai ser psiquiatra

beijo de mulata
É oficial. O livro preferido do meu sobrinho é o DSM-IV. Eu já lhe tentei trocar as voltas, esconder o livro, colocá-lo ao lado de outros cheios de desenhos apelativos com animaizinhos e carrinhos, arrumá-lo na estante ao lado de outros com lombadas azuis muito parecidas, mas ele não se deixa enganar. Decidiu, sem apelo nem agravo, que o DSM-IV é que é o livro ideal para fazer de pista de aterragem para os seus aviõezinhos e de plataforma de lançamento para os carrinhos de corrida. Cada um é para o que nasce!
28
Abr10

[welcome to mozambique] improbabilidades

beijo de mulata


Improvável é ir à prisão do Gilé (Zambézia) visitar os presos, bater à porta e ser um dos presos a abrir e convidar-nos para entrar... Welcome to Mozambique!

- Mas, Senhor Guarda, são os presos que abrem a porta? Eles não fogem?
- Não. - com um sorriso - Eles são bonzinhos... E saem todos os dias connosco para ir trabalhar na nossa machamba.
- Mas nunca tentaram fugir?
- Uma vez, sim, mas foram pela estrada e apanhámo-los logo a dois quilómetros daqui...
(Ele há coisas que se eu não tivesse visto não acreditava...)
27
Abr10

[diferenças] as ovelhas negras do rebanho

beijo de mulata


Não é fácil crescer sendo albino em parte nenhuma do mundo. As crianças correm sérios riscos de sofrer queimaduras solares graves, tumores malignos da pele, cataratas, retinopatia e o diabo a quatro (ou a sete, se preferirem, que um diabo nunca vem só e quatro diabos muito menos)... Em Moçambique, no entanto, ser albino é ser um alvo fácil.

Caso sejam protegidos pelas famílias, o melhor que lhes pode acontecer é serem apenas vítimas de discriminação e ser alvo das superstições mais cruéis. Alguns dizem que ter nascido albino é feitiço, outros pensam que se trata de pessoas vindas do outro mundo, outros chegam a pensar que são filhos do diabo e que os albinos não morrem, desaparecem. Em Angola, há alguns anos, um curandeiro muito respeitado chegou a dizer a vários dirigentes políticos que eles estavam imunes à SIDA, devendo apenas ter alguns cuidados básicos de higiene, como não ter relações sexuais com albinas*. É claro que metade deles estão agora infectados com o vírus...

As mães das crianças albinas que vi no hospital tinham, invariavelmente, um olhar assustado e triste e baixavam os olhos quando as outras mães com crianças normais as olhavam de frente descaradamente. Como se o facto de os filhos terem nascido albinos fosse a prova material de algum tabu quebrado por elas (tinham certamente cometido algum pecado inenarrável que agora estava à vista de todos). Da minha parte tinha sempre o cuidado de lhes oferecer protector solar, perguntar se a família se tinha desfeito após o nascimento da criança (e por demasiadas vezes tinha mesmo) e de pedir o apoio das Irmãs para a mãe e para a criança caso o pai as tivesse abandonado.

Mas, pior ainda, se as famílias não os protegerem, os albinos podem tornar-se bodes expiatórios das catástrofes naturais e das suspeitas de feitiços. Volta e meia nos jornais lêem-se as notícias de atrocidades cometidas sobre os albinos, vítimas de linchamento, geralmente por acusações de feitiçaria. Paradoxalmente (ou, se calhar na mesma linha de raciocínio, não entendo muito bem), alguns órgãos internos dos albinos são considerados como tendo poderes mágicos para a realização de feitiços, pelo que são muitas vezes também vítimas de rapto para tráfico de órgãos.

Daí que quando estive na Zambézia tenha ficado por demais agradada por ver albinos frequentar a escola, passear tranquilamente na rua, brincar com outras crianças. E vi muitos adolescentes quase adultos. Vivos. Todos vivos e bem tratados. É pela forma como as pessoas lidam com a diferença que se conhece a qualidade de uma sociedade.

* Valha-me Nossa Senhora do google se, depois dos sportinguistas, dos benfiquistas e dos voyeristas, agora são os fetichistas que me invadem o blog.

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